Comportamento

A moda como objeto de estudo na obra de José de Alencar

terça-feira, setembro 01, 2015

Por Rafaella Britto

(Foto: Reprodução/Clementina Maude)

O escritor José de Alencar, antes de tornar-se o romancista que nos encantou através das páginas de "Iracema" e "Senhora", dedicou-se à publicação de folhetins, "correndo a pena" nos jornais Diário do Rio de Janeiro e Correio MercantilAs crônicas eram publicadas semanalmente, geralmente aos domingos, sempre no rodapé da primeira página do jornal. José de Alencar tornou-se redator-chefe do "Diário do Rio de Janeiro" e, em 1855, abandonou os folhetins, escrevendo artigos de maior profundidade, porém retornou ao gênero no ano seguinte. 
De caráter informativo, os folhetins traziam novidades acerca do mundo moderno. Entretanto, o rigor exigido tornava estes textos jornalísticos prosas inteligentes e devaneadoras, onde os autores exercitavam a verve literária que, mais tarde, se revelaria primorosa no cenário cultural brasileiro. 
Alencar demonstrava interesse não somente pelas análises econômicas, avanços tecnológicos e acontecimentos políticos de seu período, mas lançava seus olhares também para espetáculos líricos, beleza e moda. Leia, a seguir, uma análise filosófica acerca da função da roupa no destino da humanidade, publicada em 18 de dezembro de 1856

Neste texto foi mantida a grafia original.


 Folhetim: conversa com os meus leitores

 Hoje não conversaremos.
 Não porque haja muita coisa de interessante que nos possa servir de tema: mas porque pretendo ocupar melhor a vossa atenção.
 Tomo a liberdade de dedicar-vos a pequena obra de um D. Juan do século XIX, que morreu antes de ter o tempo de dá-la à luz.
 Tem por título e por objeto: A moda.
 Escrito em um estilo ligeiro, este livro revela no entanto um estudo profundo da humanidade.
 O seu autor demonstra à evidência que a moda é a primeira ciência do mundo, pois é a ciência do progresso e a mais verdadeira expressão da civilização.
 La Rochefoucauld já tinha tinha dito no século passado que a mulher é um ente quis s'habile que babille et se deshabille.
 Longe estava ele de pensar que o seu dito espirituoso encerrava o gérmen de uma grande descoberta. 
 Não desejamos porém prevenir o leitor a respeito da importante obra que submetemos à sua consideração.
 Quisemos apenas mostrar que ela é digna de ser lida pelos homens graves e profundos que se ocupam com os destinos da humanidade.
 Depois de mostrar a influência e a alta missão da moda, o autor faz a sua história, que é ao mesmo tempo a história do gênero humano.
 Essa história abrange um período de mais de seis mil anos; e começa no paraíso com o nascimento de Eva, para acabar no século XIX com a invenção da gravata e dos colarinhos à inglesa.
 Enfim, o leitor vai julgar por si mesmo do merecimento do livro que submetemos à sua consideração.
 Ei-lo:

A Moda
(Pequeno tratado para uso dos meus leitores)

Capítulo I
O que é a Moda?

 A moda é uma arte ou uma ciência?
 Eis a primeira e importante questão que suscita esse estudo profundo e humanitário.
 As opiniões se dividem; e diversas ilustrações profissionais, de ambos os sexos, que se tem ocupado com a matéria, não conseguiram ainda dar uma solução ao problema.
 O seu erro está em adotarem uma opinião exclusiva; a moda é ao mesmo tempo uma arte e uma ciência.
 Como meio de realçar a beleza, como relevo de um quadro da natureza, como harmonia de formas, a moda é uma arte.
 Não cede à pintura, à escultura e à música pela graça das concepções; como elas tende a destruir a natureza.
 Uma mulher elegante, um quadro d'aprés nature, e uma música de Verdi não são mais do que um arremedo das obras divinas do Criador.
 Como idéia, como agente de uma reforma de usos e costumes, como influência poderosa que atua sobre o espírito público - a moda é uma ciência.
 É tão profunda como a economia política, a moral, o direito e todos esses conhecimentos que servem para dirigir a marcha da sociedade e os destinos dos povos.
 O inventor de um novo vestuário figura na história da humanidade como o autor de um sistema filosófico e o propagador de uma idéia política.
 Voltaire e um alfaiate fizeram a revolução francesa: o primeiro pregando um novo sistema filosófico; o outro talhando uma nova forma de calças.
 A pena de um e a tesoura do outro mudaram a face da Europa; enquanto Voltaire destruía a fé, o alfaiate acabava com os calções (culotes); ambos atacavam o corpo social, um pelo coração, o outro pelas pernas.
 Ultimamente a França deu-nos um segundo exemplo do poder irresistível desta alavanca poderosa a que se chama moda.
 Um extravagante, um hotel, e um chapeleiro fizeram a revolução de 1848: o primeiro, que era Fourrier, ressuscitou o comunismo; o hotel deu banquetes populares; o chapeleiro inventou os gorros vermelhos.
 Desta vez a França foi atacada como se vê, na cabeça, no estômago e na algibeira; era impossível resistir.
 O que há porém a deplorar é que a história consignando a memória de Voltaire, de Fourrier, de Lutero, de Rousseau, e de tantos outros, cometesse um indesculpável esquecimento, deixando perder-se o nome do inventor das calças e dos gorros vermelhos.
 Uma injusta obscuridade envolve a memória desses ilustres revolucionários, desses regeneradores da humanidade!
 Só posso atribuir isto a um motivo; a maior parte dos historiadores são ratões, e por conseguinte inimigos da moda. De que pequenas causas depende a verdade dos livros?...


Capítulo II
 Importância da moda

 Victor Hugo disse em uma de suas obras:
 "A arquitetura é a história da humanidade escrita em monumentos; é o livro de pedra do mundo".
 O pensamento do poeta não é exato; muito antes de elevar monumentos já o gênero humano vivia, e o seu livro de pedra não pode abranger aquele período.
 A verdadeira história da humanidade é a moda; é esse livro escrito em trapos, e transmitido de geração em geração até os nossos dias.
 Por falta de terem refletido nisto, os historiadores têm cometido uma grande inexatidão na divisão das grandes épocas do mundo.
 Deixam-se levar por certos princípios de governo, e dividem aquelas épocas segundo a forma que predominava; assim distinguem o período patriarcal, teocrático, monárquico e republicano.
 Essas distinções são completamente falsas; o método exato e único é o que se baseia na moda.
 Ei-lo:
 A história da humanidade apresenta em primeiro lugar duas grandes épocas: - a época da humanidade nua e a época da humanidade vestida.
 O tempo da humanidade nua é antediluviano e não tem história; mas apenas tradições, de que depois falaremos.
 O tempo da humanidade vestida, a que vulgarmente se chama o período histórico, divide-se em três idades.
 A idade das vestes talares, a que se chama antiguidade; a idade das vestes até o meio do corpo, e que por isso se chamou média idade; a idade das vestes apertadas, conhecida com o nome de idade moderna.
 A túnica, o saiote, e a casaca, eis as três grandes divisões, ou épocas históricas do mundo; depois veremos as diversas subdivisões que sofreram cada uma dessas modas.
 Este rápido esboço prova toda a importância da ciência de que vamos tratar, e que está destinada a dentro em pouco governar o mundo.


Capítulo III
Alta missão da moda

 Os filósofos, quando tratam do destino da humanidade, servem-se de uma palavra oca e sem sentido - o progresso.
 Mas quando se lhes pergunta o que é o progresso, não o sabem definir; dizem apenas que é a faculdade que tem o homem de aperfeiçoar-se.
 Semelhante definição é inadmissível; se o progresso é o instrumento da perfectibilidade, parece que mais cedo ou mais tarde a humanidade devia chegar à perfeição.
 Ora, esta hipótese é um absurdo; a perfeição é Deus, e a humanidade não pode nunca divinizar-se.
 O que se segue pois é que o progresso, como o entendem os filósofos, seria uma causa sem efeito, um movimento sem ação.
 Mas é que os filósofos se enganam completamente.
 O progresso não é a faculdade de aperfeiçoar-se; é unicamente a arte de vestir-se.
 Isto não é um paradoxo, não; é a verdade confirmada pela história.
 Lancemos um olhar pela humanidade desde o começo do mundo até hoje, e veremos que a perfectibilidade humana não se tem revelado senão na arte de vestir.
 Com efeito, na ciência a antiguidade nos apresenta uma série imensa de nomes que fazem vergonha aos sábios modernos: Platão, Sócrates, Archimedes, Euclides, etc.
 Na poesia épica, Homero como um Deus, e Virgílio como um anjo, dominam ainda do alto do seu trono a literatura moderna.
 Na tragédia, Sófocles e Thucidides não são representantes; mas são imitados a todo o momento.
 Nas artes, Phidias, Orpheo, Píndaro, Sapho, Praxisteles elevaram a pintura, a escultura e a música a um ponto que ainda não atingimos.
 Em legislação, as sábias instituições da Grécia, do Egito e de Roma ainda hoje nos governam; as institutas de Justiniano são ainda o nosso direito civil.
 Em luxo, como poderemos igualar as magnificências de Thebas, a cidade de cem portas, os palácios persas e as riquezas fabulosas de Memphis? 
 Em guerras, as nossas são pequenos combates, brigas de menino de escola, à vista daquelas pelejas titânicas, daqueles sítios de dez anos, daquelas batalhas de Marthon e Salamina.
 A respeito de monumentos, as nossas cidades tornam-se presepes à vista das pirâmides do Egito, da muralha da China, e dos jardins de Babilônia.
 Enfim, os homens de hoje são pigmeus na força, na inteligência e no trabalho, à vista dos homens da antiguidade.
 Depois da queda do Império Romano não se descobriu e não se inventou nada mais neste mundo.
 A América já era conhecida de Platão; a pólvora e a bússola tinham sido inventadas pelos Chins; a imprensa foi imitada das belas estampas de sedas da Índia, onde se viam os caracteres da linguagem sânscrita.
 Os homens modernos apenas têm o direito ao brevet de invention de duas cousas, que são: o romance e o governo representativo. 
 Mas esta invenção não tem o menor merecimento; o romance é um misto do drama e do conto, como o governo representativo é um misto da monarquia e da democracia.
 Assim pois onde é que está o progresso, onde está a perfectibilidade humana?
 Na arte de vestir.
 O homem saindo das mãos de Deus, nu, recebeu a missão divina e providencial de vestir-se.
 Durante seis mil anos ele tem realizado esta missão, progredido sempre.
 A nudez completa ou parcial é sinal de mais ou de menos selvageria; assim como o vestuário completo é sinal de maior ou menor progresso.
 O século XIX conseguiu elevar a civilização a um alto ponto vestindo o homem de maneira a só deixar-lhe uma pequena parte do rosto de fora.
 Quando a moda tiver conseguido cobrir o homem todo, sem deixar aparecer nem a ponta do nariz, a humanidade terá atingindo a perfeição e concluído a sua missão na terra.

18/dez./1856 

Fonte:
Folha de S. Paulo - Coleção Crônicas Escolhidas - José de Alencar; Editora Ática S.A - São Paulo - 1995.

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