Cinema e TV
Elke Maravilha: “Apanhei muito em casa e isso me ajudou a ser forte como o super-homem”
segunda-feira, janeiro 01, 2018
Reportagem
de Yolanda de Paula Filha para a revista Sétimo Céu em 1977 –
Ela tem uma voz quase sensual que
aumenta e diminui de tom. As palavras saem com calma, como se pensasse alto. De
vez em quando, a famosa gargalhada que todos conhecem. Consciência de si, Elke
Maravilha tem de sobra. Sabe que sua figura deslumbrante, colorida, esfuziante,
ilumina como o sol qualquer ambiente. Talvez por isso a sutileza ao declarar
que prefere dias chuvosos: “Não gosto do sol, não preciso dele.” A sua maneira
de ser, sempre fantasiada e com um sorriso que ninguém sabe se é de ironia ou
de alegria, ela diz que é “para mostrar que a vida é cor-de-rosa apesar de
tudo”.
Seu nome verdadeiro é Elke
Georgievna Grunnup, filha de pai russo e mãe alemã. Nasceu em Leningrado e por
problemas políticos, seu pai veio para o Brasil cuidar de uma fazenda em
Itabira, interior de Minas Gerais. Em contato com a terra e com os bichos, Elke
foi aprendendo o que é a vida através da observação da natureza. Em casa, a
educação era rígida. Debaixo do pau.
E o medo de apanhar, a fazia ser igual ao super-homem.
“Em casa, eu era obrigada a jogar três partidas de xadrez por dia. Se eu
quisesse ver um filme que fosse adaptado de um livro, teria que ler o livro
primeiro, para depois assistir ao filme. Ruim, não é? Muita ditadura, não é?
Mas sabe, amor, eu tirava de letra, tudo bem. Para mim esse esquema funcionou
muito bem, tinha que ser assim. Para os meus irmãos não: porque, se não fosse
assim, eu não ia prestar para a humanidade não, sabe? Eu tinha medo de tudo,
muito sensível, não tinha disciplina de cabeça. Mais ou menos fiquei
invulnerável. Hoje para mim pode vir até guerra que eu vou dar risada. Vou
tirar partido dela.”
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(Foto: Reprodução/TPM) |
A
descoberta do sexo
“Meu primeiro contato sexual foi aos
16 anos, em Belo Horizonte. Agora, a primeira sensação de prazer foi por uma
mesa, quando tinha seis anos. Encostei na mesa por acaso e senti uma sensação
estranha. Depois, pelos boiadeiros e motoristas do meu pai. Ah, eu tinha muita
atração por Tarzan. Dormia abraçada ao travesseiro, pensando que era o Tarzan.”
“Agora, o primeiro cara mesmo foi um
homem rico, olha que coisa. Nunca mais tive um homem rico, graças a Deus. Ai
que saco que é um homem rico. Mas ele era legal, gostava muito dele, mas não
podia durar.”
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(Fotomontagem/Reprodução) |
Ele
era casado?
“Nunca transo com homem casado.
Homem casado para mim é mulher. É um preconceito meu, não transo porque gosto
de homem para mim, integral. E homem casado já tem rabo preso, não é? Não gosto
da metade das coisas. Gosto de tudo inteiro, então não entro. Homem casado
nunca transei. Nunca.”
“Depois da primeira experiência sexual,
segui uma vida normal. Não foi curiosidade, foi amor mesmo. Eu já sabia como
era ir para a cama com um homem. Quem mora na roça vê muito cavalo tendo
relações sexuais, muito gato, muito cachorro. E a gente tá ali assistindo.
Então não tem curiosidade. Depois teve uma época de abstinência sexual muito
grande. Porque de vez em quando tenho essas fases de abstinência e entro numa
mais espiritual. Depois volto a ativa, tcham, de mergulho, ah ah ah. Não sei
como é a vida dos outros para saber se a minha vida sexual é normal. Mas é
normal sim. Satisfaço bem ao homem, e se satisfação é dos dois, acho que só
pode ser normal. Não sei se sou boa de cama. Para certos homens sim, para
certos homens não.”
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(Foto: David Drew Zingg/Acervo IMS) |
Elke foi casada três vezes. O último
casamento durou três anos, com o arquiteto Julinho. Há meses, separaram-se e
agora ela está com Rubão, músico de Gilberto Gil. O fato de os dois serem
negros fez logo as pessoas comentarem que ela prefere pessoas de cor.
“Já tive vários homens brancos. Por
acaso, os dois últimos foram negros. Um atrás do outro. Por acaso, né? Mas não
é verdade que só transo com homens negros. A maioria dos meus homens foi
branca. Agora, se pintar verde, amarelo, roxo, não importa. Tanto faz.
Inclusive as pessoas encaram o negro como objeto sexual, mas não tem nada a
ver, porque o outro marido, o Julinho, era bem platônico, mas platônico mesmo,
o meu amor por ele. Chegava a irritar de tão platônico, ah ah ah! De outras
raças só namorei japonês, mas aí não aconteceu nada não. Ele nem falava
japonês. Às vezes namoro e não vou obrigatoriamente para a cama. Tem isso
também. Adoro namorar, sabe. Amor platônico é ótimo porque dura o resto da
vida. Tive um aos 16 anos que dura até hoje. Nunca demos nem um beijo. Não é
amizade, é amor mesmo, mas um outro tipo de amor”.
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(Foto: Reprodução/Veja) |
“Procuro
um amor para o resto da vida”
“Amor não dá para racionalizar. Não
tem conceito. Acho que explicar com palavra não tem sentido. Quando estou
amando, meu processo de vida se acelera, fico mais corada, o sangue gira mais
rápido, percebo uma mudança radical, de vida, de metabolismo. Durmo pouco e
enquanto estiver amando fico nesse processo a vida inteira. Acredito em amor
duradouro, mas não pintou ainda. De uma certa forma, vivo em busca, procuro um
amor para o resto da vida. Uma pessoa que envelheça junto com a gente. Eu
procuro sim”.
“Quando me sinto atraída por um
cara, nunca tomo a iniciativa. Tem que partir dele. Acho que bem do meu lado
feminino. Não teria coragem de chegar para um cara e dizer que estou a fim
dele. Tenho que ser conquistada pelo homem, sabe. Não tenho um padrão para os
meus relacionamentos. Varia, as coisas vão acontecendo. Agora, quando estou
vivendo com um homem, sou absolutamente fiel. Quando vou com outro é de vez,
não volto. Com o Julinho acabou um mês antes de conhecer o outro. De um modo
geral não procuro arranjar outro para largar uma pessoa. Acabou, acabou. Se
pintar depois outra pessoa, tudo bem.
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“As pessoas me acham anormal dentro do que para elas é normal. Isso não me incomoda.” (Foto: Revista Contigo/Astros em Revista/Acervo de Orias Elias) |
–
Você se acha uma boa pessoa?
“Procuro ser boa pessoa. Pelo menos
não prejudico ninguém, não é? Se as pessoas me prejudicam, não tem importância.
Claro que existem pessoas que prejudicam outras, mas azar o delas, não é? É
mais fácil ser prejudicada. Sei que as pessoas me acham anormal, dentro do que
para elas é normal. Convivo muito legal com isso, porque se levo pontapé numa
esquina, mais adiante recebo milhões de beijos. Já entrei em muitas situações,
até em prisão eu já estive e vi que posso viver muito bem até dentro de uma
prisão. Fui presa pelo DOPS porque rasguei um cartaz no aeroporto que dizia:
“Procura-se terrorista”. Fiquei presa cinco dias. Morrendo de medo, mas ninguém
percebia. Comia feito uma louca, de nervosismo. Eles diziam: Mas você gosta dessa
comida? Eu respondia: Adoro, me dá mais. A hora de dormir era às 22 horas, tudo
bem, lá ia eu dormir. Porque eu não indisciplinava no que eles disciplinavam.
Por exemplo, não ia contestar que a hora de dormir era às 22 horas. Têm tantas
horas para se fazer coisas incríveis. Minha forma de indisciplina é outra. Faço
coisas que aparentemente são permitidas, mas que a pessoa prestando bem atenção
vai ver que não são tão permitidas assim. É uma coisa instintiva, não é
racional. Depois é que vejo o que fiz, sei lá”.
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Como modelo da estilista Zuzu Angel, época em que foi presa pelo regime militar (Foto: Reprodução) |
“A
paixão pela Grécia”
O grito pela independência começou
com uma viagem à Europa, quando conheceu um grego, ainda no navio, com o qual
se casou e entrou numa louca aventura. Os dois, de carro, viajaram pela Europa,
até que o dinheiro acabou e Elke foi trabalhar como intérprete e tradutora. De
todos os países que conheceu, ficou uma grande paixão pela Grécia: “Eta povo
maravilhoso! Tenho uma grande paixão pela Grécia. Depois do Brasil, é o país
que mais amo. O Brasil é a minha terra e eu sou bairrista, mas acho que para o
povo em geral, é um país bem ingrato. Não é que eu não seja povo, mas o meu
trabalho me dá condições de viver melhor. Para a maioria dos brasileiros é um
país ingrato. Agora eu sou apátrida. Por causa da prisão, me tiraram a cidadania.
Então vou ser cidadão alemã. Tenho um documento do meu pai porque ele serviu na
Finlândia e adquiriu a cidadania alemã. Então eu tenho o direito. Vou ser
alemã”.
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No Grand Canyon (Foto: Reprodução/TPM/Arquivo pessoal) |
Não
dói ser apátrida?
“Não, porque eu sou brasileira. Não
são eles que vão me dar um papel dizendo o que eu sou. Estou me lixando para um
papel. Tenho 34 anos, sou brasileira há 28 anos. Sou e pronto. Não ligo muito
para esse negócio de política porque política não resolve nada. Resolve? O que
quer dizer politizada? Sou uma pessoa politizada, mas não sou de política de
centro, de esquerda nem de direita. Sou pela justiça. Se o lado direito está
injusto, sou contra, se o esquerdo está injusto, também sou contra. Sou
política porque vivo sem política. Se pintar esquerdo, direito, centro, vou viver
sem precisar de política, porque não me deixo enriquecer, nem lícita, nem
ilicitamente. Quer dizer, não vão precisar tirar de mim e dar ao povo porque
não tenho mais do que mereço. Nesse ponto sou política, porque sei exatamente o
meu limite: não ter mais do que mereço. Acho que todo mundo devia ter o seu
limite, porque aí, não precisaria esquerda, direita, ou centro. Nada, porque
cada um estaria no seu lugar, não é?
“Sou
amiga de todos”
“Não tenho só amigos bichas. Tenho
amigos em todas as esferas: freiras, prostitutas, bichas. Agora, as pessoas é
que insistem em enfatizar esse aspecto. Acredito que as bichas se identificam
muito comigo porque todo sonho do homossexual é ser uma mulher loura, alta, que
chega. Chegando. Eles gostam muito. Esse tipo vistoso. Também respeito muito
eles e esse respeito é uma forma carinhosa de amizade e eles sentem isso. Não
acho homossexualismo anormal. Tudo que está aí é absolutamente normal. Por que
anormal? Será que Deus não fez também o homossexualismo? Quem fez então? O
homem? Será que o homem tem condições de fazer alguma coisa? Não tem, né? É
tudo da natureza, sabe? O homem não tem livre arbítrio para mudar as coisas a
seu bel-prazer. O que tá aí foi a natureza que fez, foi Deus quem fez. Se o
homem gosta do homem, a mulher da mulher, só pode ter alguma razão, sei lá.
Talvez a natureza esteja precisando diminuir a população que está aí e por isso
faça mais homossexualidade para que as pessoas não se reproduzam tanto, porque
nossos antepassados resolveram ter 20 filhos cada um, não é?
A natureza manda defesas, ela manda
pestes, manda câncer, manda coisas assim, que não são boas nem más, são da
natureza e o homossexualismo é da natureza. Vi cachorros tendo relações com
cachorro, porco com porco, gato com gato, porque o homem não pode ter relações
com outro homem? É da natureza, absolutamente da natureza”.
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Com o cabeleireiro Silvinho (Foto: Reprodução/Acervo IMS) |
“Tudo o homem transa como moral.
Tudo que existe. Até incesto, por exemplo. Antigamente o incesto existia
livremente e hoje poderia continuar existindo porque existe a pílula, então não
existe o perigo de um pai transar com a filha e ter filhos, né? Porque poderia
nascer mongoloide, não é? Por causa do problema genético. Mas o homem
transformou isso num problema moral e não é. Qual é o imoral de um irmão
transar com uma irmã? Ninguém vai me convencer que é imoral. Incesto, homossexualismo,
lesbianismo, não é uma coisa do nosso tempo. São coisas antigas. Existia na
república dos gregos. Sócrates, Platão, Aristóteles tinham amor pelo homem.
Pelos rapazes jovens. Lesbianismo vem da Ilha de Lesbos, onde Safo tinha uma
república de mulheres. São coisas antigas, que existem. É da natureza e não é
imoral, não é?
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(Foto: David Drew Zingg/Acervo IMS) |
Houve uma época que falaram que eu
era homem vestido de mulher. Fui a responsável, porque numa entrevista
perguntavam: ‘Quem é você?’ Respondi: ‘Sou um travesti di-vi-no, que está
enganando vocês todos, ah ah ah.’ Foi engraçado. Chegaram até para o meu
ex-marido – essa foi ótima - e disseram:
‘Sabe que a Elke é travesti?’ Aí ele respondeu: ‘Que engraçado, fui casado com
ela seis anos e nunca tinha percebido.’
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(Foto: Acervo de Orias Elias/Astros em Revista) |
O meu lado masculino é muito
afogado. Nem calças compridas eu uso. Não é medo de parecer homem, não tenho
vontade. Gosto de roupas femininas mesmo. Não estou reprimindo esse lado, já
fui de homem para o Chacrinha, já me vesti, já representei um papel de homem,
de brincadeira. Mas o lado masculino não pinta. Não tenho nada do lado
masculino. Tenho no sentido de dirigir minha vida, de homem nenhum me
sustentar. O único homem que me sustentou na vida foi meu pai. De ser
auto-suficiente, de ser dona da minha cabeça. Nem sei se é um lado masculino.
Mas eu tenho amigas mulheres, muitas amigas mulheres. Amigas mesmo, amizade
numa boa, sem concorrência, não sou concorrente de mulher nenhuma.”
“Prefiro que o homem fique por cima.
Gosto de ficar embaixo, submissa. Sou uma pessoa submissa ao homem. Quer dizer,
nem sempre. Por exemplo, num restaurante prefiro dividir as despesas. Não deixo
ele pagar sozinho, nem gosto de pagar sozinha. Prefiro dividir. Nunca tive
dificuldades financeiras, sabe? Sei sete idiomas, sempre dá pra trabalhar como
tradutora e intérprete. Hoje vivo dos shows, do circo, do cinema, da televisão,
não é? Não sou mais manequim não, sabe, faço alguns desfiles de vez em quando.”
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(Foto: Reprodução) |
“Drogas,
não. Prefiro o álcool”
“Já experimentei várias drogas, mas
não é a minha. Minha droga mesmo é o álcool, que estou acostumada a tomar desde
criança. Meu pai, como todo russo, bebe bem, então me ensinou a curtir os
venenos da vida e a não me viciar em nada. Sou viciada em cigarro. Prefiro o
meu estado normal, com álcool ou sem álcool. A bebida é uma velha amizade. Mas
não fico bêbada, bebo há 28 anos. Não me afogo na bebida, mas gosto de beber.”
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(Foto: Adhemar Veneziano) |
–
É verdade que você foi bêbada para o Chacrinha e brigou com ele?
“Não, não lembro. Teve um dia que
ele perguntou se eu estava bêbada. Estava sim, de cansaço. Há pouco tempo ele
me agrediu no ar. Depois pediu desculpas e continuou o velho amor de sempre. Eu
também errei, mas ele não tinha o direito de me agredir no ar. Depois ele
reconheceu e teve a humildade de pedir desculpas. Tudo bem.”
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Com Claudia Raia e Chacrinha (Foto: Reprodução) |
–
Afinal, Elke, quem é você?
“Tenho uma profunda alegria de
viver, nunca senti vontade de morrer. Quando era criança talvez tenha pensado
na morte algumas vezes. Adoro a chuva, não gosto do sol, não preciso dele. Não
leio muito, não gosto de ler revistas, nem jornais. Prefiro ler pessoas. O
papel é muito paciente, as pessoas escrevem o que querem. Então prefiro
pesquisar ao meu modo. Mesmo estando sozinha tenho um ser humano do meu lado.
Assim como aprendi a falar sozinha, a andar sozinha, aprendi a ficar sozinha
sem me sentir só. Não são várias personalidades que tenho, são mil pessoas que
me ensinaram coisas pela vida afora. Mil pessoas que vivem dentro de mim,
porque não aprendi nada sozinha.
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(Foto: Terceiro/Agência O Globo) |
“Não tenho filhos porque não
encontrei a pessoa certa para viver o resto da vida comigo. Não quero criar
filhos sozinha. Não gosto de ser mãe, gosto de ser avó, quero ser avó. Acho o
ser humano variado, minhas amizades não têm padrão, tenho amizades em todas as
esferas. Tem pessoas das quais rio muito, tem pessoas de que não rio nunca.
Estou sempre absolutamente de igual para igual com as pessoas. Não sou
violenta. Com meu marido não brigo em nível de violência. A gente tem briga,
normal. Tem hora que tenho vontade de dar na cara de uma pessoa. E quando vejo
gente usando gente, faturando gente. Sabe? Essas falsas caridades. Não sou
jurada, nunca julguei ninguém. Vou no Chacrinha para divertir o povo e para
brincar. Quando eu achar o homem da minha vida, eu vou saber, uai. Procuro a
metade da laranja. Pode ser que já tenha pintado. Eu não tenho limites, ninguém
tem. Tenho limite agora, mas se alguém abrir mais caminhos não vou ter mais
limites. Um recorde é sempre batido. Às vezes pergunto: será que liberdade é
ruim, será que é bom? Não sei se é importante. Liberdade é perfeição, e estamos
longe da perfeição. Não ando em busca da liberdade, não sou uma mulher livre,
não sou perfeita”.
Extraído de:
Revista Sétimo Céu –
Série Amor nº 77. Maio, 1979 – Bloch Editores. Acervo de José Henrique Uessler. Reportagem original disponível
no blog Revista Amiga e Novelas.
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