Cinema e TV

Liquid Sky: androgenia futurística no cinema de contracultura

sexta-feira, abril 15, 2016

Por Rafaella Britto


Quando o extraterrestre Ziggy Stardust aterrissou na Terra, trazendo sua mensagem de paz e amor, o mundo viu-se diante de uma revolução estética e comportamental: para levar sua mensagem e alertar a humanidade sobre o fim do mundo, que ocorreria dentro de cinco anos, Ziggy formou a banda As Aranhas de Marte. Experimentando viagens alucinógenas com ácido e pregando a ambiguidade sexual, o alien andrógeno destruiu as barreiras do gênero: não era homem e nem mulher, mas sim alguém que não tinha limites para experimentar a si mesmo.
A história deste personagem fictício é narrada no álbum-conceito de 1972, The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders From Mars, de David Bowie. O personagem, sustentado pelo sucesso do hit Starman, imortalizou Bowie e tornou-se a epítome do glam rock.

David Bowie como Ziggy Stardust (Foto: Reprodução)

Os anos 1970, herdeiros da contracultura inaugurada na década anterior, foram tempos de efervescência cultural e muitos contrastes: enquanto os hippies preconizavam a paz, o amor e o fim da Guerra do Vietnã, os punks rejeitavam toda ordem hierárquica estabelecida, pregando o caos e a anarquia através da palavra de ordem ‘Do it Yourself’.

Hippies x Punks: contrastes culturais na década de 1970 (Foto: Reprodução)

A contracultura, para além da música, refletiu-se no cinema: o belo Joe Dallesandro tornou-se o astro underground dos filmes Flesh (1968), Trash (1970) e Heat (1972), trilogia dirigida por Paul Morrissey e produzida por Andy Warhol. Numa linguagem pouco acessível e sem rigor técnico de direção, Morrissey e Warhol tecem odes à beleza e questionam o sentido da arte numa sociedade cada vez mais consumista.

Joe Dallesandro, o astro underground (Foto: Reprodução)

Paralelamente, John Waters tornava-se conhecido por seu cinema trash de caráter altamente subversivo: Waters incorporava ao elenco de seus filmes drag queens como Divine, atrizes pornôs como Traci Lords, e criminosos condenados, como a assaltante Patty Hearst. Seu filme Pink Flamingos (1972) é considerado um clássico do cinema de contracultura: estrelado por Divine, Pink Flamingos horroriza ao banalizar a violência, expondo de maneira crua a animalidade do homem: mãe e filho praticam sexo oral; um homem pratica zoofilia com uma galinha; os personagens comem fezes, praticam canibalismo e exortam: “Matem todos! Tolerem o assassinato em primeiro grau! Advoguem o canibalismo! Comam merda! Imundície é a minha política! Imundície é a minha vida!”

Divine em Pink Flamingos (dir. John Waters, 1972) - (Foto: Reprodução)

A partir da década de 1980, a contracultura declinou, porém dela germinaram outras subculturas de contestação do conservadorismo e novas formas de protagonismo da juventude dentro da sociedade. O cinema indie conquistava maior visibilidade e reconhecimento. Dentre as produções do cinema independente desta época, destaca-se a ficção científica Liquid Sky (1982). Dirigido por Slava Tsukerman, Liquid Sky, à época de seu lançamento, foi descrito pela crítica especializada como “o mais divertido, maluco, sujo e perversamente bonito filme de ficção científica já realizado.”

Anna Carlisle em Liquid Sky (dir. Slava Tsukerman, 1982) - (Foto: Reprodução/Tumblr)

De origem judaica, o russo Slava Tsukerman imigrou da União Soviética para Israel em 1973 e, três anos depois, mudou-se para Nova York. Atento ao comportamento da juventude nova-iorquina, começou a esboçar o que, anos depois, viria a ser Liquid Sky, seu único trabalho de sucesso. Pouco se sabe a respeito de seus trabalhos anteriores ou posteriores a Liquid Sky. Sabe-se que, em 2004, dirigiu o documentário Stalin’s Wife, sobre Nadezhda Alliluyeva, a segunda esposa de Joseph Stalin, e em 2008, o filme Perestroika.


Anna Carlisle como Jimmy em Liquid Sky (dir. Slava Tsukerman, 1982) - (Foto: Reprodução)

Esqueça as ficções científicas blockbusters de Hollywood. Liquid Sky não é nada parecido com nenhuma delas. O longa-metragem, narrado de maneira não linear, envolve a cidade de Nova York em um contexto futurístico de sexo, drogas e rock ‘n’ roll: durante um desfile de moda, alienígenas (que nunca são mostrados durante o filme) aterrissam na Terra em busca de um alimento raro em seu planeta: a substância produzida pelo cérebro humano no momento do orgasmo, que, para os E.T.s, tem um efeito equivalente ao da heroína para os humanos. Eles encontram a fonte deste alimento em Margareth (Anna Carlisle), uma modelo andrógena, ninfomaníaca e bissexual, que vive com sua namorada traficante, Adrian (Paula E. Sheppard), e leva uma vida de devassidão, tendo relações com outros homens e mulheres. Margareth tem um rival nas passarelas, o modelo Jimmy, também interpretado por Anna Carlisle.

Anna Carlisle e Paula E. Sheppard em Liquid Sky (dir. Slava Tsukerman, 1982) - (Foto: Reprodução)

Liquid Sky não é um filme fácil de ser visto: por seu enredo nonsense e sua produção de baixo orçamento, pode ser, à primeira vista, considerado um filme trash. Mas não se engane: Liquid Sky recebeu inúmeros prêmios internacionais por suas inovações técnicas, dentre eles, os prêmios do júri nos festivais de Montreal, Sydney, Bruxelas e Cartagena, e certamente inspirou cineastas como Quentin Tarantino. Você pode amá-lo loucamente, como também pode odiá-lo, alegando que foi o pior filme que você já viu em toda sua vida. Mas uma coisa é certa: a experiência de ver Liquid Sky é única e, para os amantes de moda, é uma verdadeira aula. Confira a famosa cena do desfile:



O ano de 1982 marca o início da moda New Wave, movimento musical pós-punk que envolveu o mundo em neon, sintetizadores e cabelos empastados de brilhantina. Os figurinos de Marina Levikova dialogam com obras de Kandinsky e o brilho do glam rock, criando imagens artísticas surrealistas de singular impacto visual. O estilo excessivamente colorido de Liquid Sky e sua trilha sonora peculiar, que conta com versões eletrônicas de clássicos barrocos de Carl Orff e Heinrich, exerceram influência significativa sobre a cena clubber surgida na Inglaterra na década de 1990 e início de 2000.


(Foto: Reprodução)

Marina Levikova nasceu em Moscou. Após concluir os estudos no Instituto de Arte de Moscou, trabalhou durante alguns anos como figurinista para os estúdios Mosfilm. Entre seus trabalhos na Rússia, destacam-se o figurino do filme Gypsies Go To Heaven, que recebeu a Concha de Ouro no Festival Internacional de Cinema de San Sebastián, na Espanha. No fim da década de 1970, estabeleceu-se nos Estados Unidos, e tornou-se reconhecida por seu trabalho no design de figurino de Liquid Sky. À época de lançamento do filme, a crítica destacou “o senso de moda” de Levikova, que causou impressão nas audiências estadunidense e europeia. O Hollywood Reporter observou que “Marina Levikova traja o filme com uma grande mistura de estilos.”


(Foto: Reprodução)

(Foto: Reprodução)

(Foto: Reprodução)

Ironicamente, os atores do clássico cult de Tsukerman não deslancharam em suas carreiras. Anna Carlisle posou para a revista Playboy em 1984 em ensaio intitulado “Cult Queen”, estrelou papéis secundários em filmes como Procura-se Susan Desesperadamente e Crocodilo Dundee, e retirou-se definitivamente do cinema em 1990. Já Paula E. Sheppard, sua namorada em Liquid Sky, iniciou sua carreira de maneira promissora, em 1976, no thriller Alice, Sweet Alice, com Brooke Shields. Após estrelar Liquid Sky, atuou numa produção épica medieval de baixo orçamento, Tam Lin, filme que nunca foi lançado comercialmente. Em 2000, um fã-site foi criado em sua homenagem.

Anna Carlisle na Playboy, em 1984 (Foto: Reprodução/Tumblr)

Em 2014, Tsukerman anunciou que estava sendo produzida uma sequência de Liquid Sky, tendo ainda Anna Carlisle no papel principal. Atualmente, o clássico de 1982 encontra-se disponível no YouTube em duas versões: inglês sem legendas e inglês com legendas em espanhol. No Brasil, foi relançado em DVD pela Cult Classic.

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