Comportamento

A estética brega

sábado, maio 21, 2016

Por Rafaella Britto


É comum utilizarmos a palavra ‘brega’ como adjetivo para descrever aquilo que consideramos feio ou démodé. Segundo o dicionário, o termo ‘brega’ designa algo “de mau gosto, cafona”. No entanto, acredita-se que, em vista do atual processo democrático da moda mundial, este termo perdeu sua conotação pejorativa e, agora, designa um estilo que conquista admiradores não somente entre as classes baixas, como também entre as classes médias e altas, e chama a atenção da indústria fonográfica. Mas afinal, o que é brega?

As raízes do brega na música romântica popular

As origens do termo ‘brega’ são discutíveis. Acredita-se que a palavra seja originária de “Nóbrega”, referente à Rua Manuel da Nóbrega, em Salvador, local onde, entre os anos de 1930 e 1950, funcionava uma zona de prostituição. Nos bordéis nordestinos, tocava-se um tipo de música romântica que caminhava entre bolero e samba-canção. E foi a este tipo de música, caracterizado pela pouca elaboração melódica, e recheado de letras sentimentais que expressam o amor desesperado, que passamos a denominar ‘brega’.
O que hoje conhecemos como brega tem suas raízes na música romântica brasileira dos anos 1930, 40 e 50. Em 1946, o cantor Vicente Celestino (considerado uma das mais importantes vozes brasileiras do século 20) estrelou o aclamado filme “O Ébrio”, filme baseado na peça teatral homônima de sua autoria, e dirigido por sua mulher, Gilda de Abreu. “O Ébrio” foi o maior sucesso do cinema brasileiro nos anos 1940, chegando a desbancar a bilheteria de “... E O Vento Levou” em muitas cidades.
A obra conta com dois números musicais de Vicente Celestino, sendo o mais marcante deles a interpretação da canção “O Ébrio”, que deu título à peça e ao filme. Gilberto (Vicente Celestino), desiludido no amor e na vida, afunda-se na vagabundagem e no vício da bebida. Na mesa de bar, com seu violão e voz possante, entoa os versos: “Tornei-me um ébrio e na bebida busco esquecer/Aquela ingrata que eu amava e que me abandonou.”


Assim como Vicente Celestino, outros cantores considerados grandes ídolos do rádio tornaram-se ‘ultrapassados’ e ‘démodés’, e foram involuntariamente “arrastados” para o rótulo brega. Há exemplos de memoráveis intérpretes clássicos da música romântica, como Francisco Alves, Nelson Gonçalves, Agnaldo Rayol e Cauby Peixoto.


Francisco Alves, Nelson Gonçalves, Agnaldo Rayol e Cauby Peixoto: com o passar dos tempos, os ídolos do rádio foram rotulados de bregas (Fotomontagem/Reprodução)

A nova música popular brasileira

No dia 22 de agosto de 1965, estreava na TV Record o programa Jovem Guarda, apresentado pelo trio Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa. O programa originou o movimento musical de mesmo nome, do qual surgiram os primeiros ídolos adolescentes da música brasileira. A Jovem Guarda, com suas baladinhas iê-iê-iê açucaradas, influenciou o comportamento, a moda e a linguagem da juventude dos anos 1960.


Roberto, Wanderléa e Erasmo Carlos, apresentadores do programa Jovem Guarda (Foto: Reprodução/Vírgula)

Da Jovem Guarda surgiram nomes da música popular que desafiavam o bom gosto da elite: dentre eles, estava Reginaldo Rossi, que, inicialmente, liderava a banda de pop-rock The Silver Jets. Outros convidados ilustres do programa eram Ronnie Von, Sérgio Reis, Wanderley Cardoso, Rosemery, Renato e seus Blue Caps, Os Incríveis, Deni e Dino, Leno e Lilian e Eduardo Araújo. A Jovem Guarda era vista com maus olhos pela intelectualidade brasileira, que considerava o movimento como ingênuo e alienado à realidade política da época. (*)


Roberto, Wanderléa e Erasmo Carlos no programa Jovem Guarda (Foto: Reprodução)

Com o fim do programa, em 1969, a Jovem Guarda deixou de existir. Alguns de seus integrantes deram suas carreiras por encerradas, enquanto outros enveredaram por novos estilos: Sérgio Reis encontrou-se na música sertaneja; Roberto Carlos ficou conhecido como um cantor romântico; e Reginaldo Rossi, após o lançamento do hit “Garçom”, foi alcunhado de “Rei do Brega”.


O estilo brega de Reginaldo Rossi nos anos 70 (Fotomontagem/Reprodução)

Na segunda metade dos anos 1970, a música brega adquire uma roupagem ‘moderna’, misturando elementos da música disco e ritmos latinos como a lambada. Os grandes expoentes desta nova vertente são Gretchen, consagrada como a “Rainha do Rebolado” e famosa por sucessos como o “Melô do Piripiri” e “Conga La Conga”; e Sidney Magal, que, ainda hoje, causa furor entre as fãs com seu requebrado sensual e músicas como “Sandra Rosa Madalena, a Cigana”, popular nas rádios e em programas de TV como Chacrinha e Silvio Santos.


Sidney Magal e Gretchen, ícones do brega nos anos 70 e 80 (Fotomontagem/Reprodução)

Do fim da década de 1980 em diante, artistas bregas tornam-se fenômenos comerciais: músicos satíricos como Mamonas Assassinas e Falcão consolidam-se com sucesso no mercado. Posteriormente, no fim dos anos 90, ocorre o boom do axé-music e o surgimento do funk carioca. Já nos anos 2000 e 2010, é a vez do tecnobrega (fusão de elementos da música eletrônica e da música brega nordestina) dominar os meios de comunicação de massa.


Mamonas Assassinas: o rock satírico nos anos 90 (Foto: Reprodução/Vírgula)

O visual "brega-chique"

A música trouxe consigo performances e estilo próprios: a estética ‘brega-chique’ caracteriza-se pelo exagero, o abuso de brilhos, cores, a mistura de estampas e a descoordenação de peças.  
Camisas de cetim, mangas bufantes, babados, veludo, pele de cabra, muito brilho e salto alto: a moda de Sidney Magal era um show à parte. Em 1977, o cantor revelou à revista Contigo que contratou os serviços do costureiro carioca Dalton para criar para ele uma moda requintada, elegante e expressiva. O visual de Magal, em seu início de carreira, é marcado pela constante presença do branco, sua cor favorita.


O visual de Sidney Magal no início da carreira ficava a cargo do costureiro carioca Dalton (Fotomontagem/Reprodução)

Duas personagens interpretadas por Regina Duarte lançaram moda com seu visual ‘brega-chique’. A primeira foi a Viúva Porcina, na novela “Roque Santeiro” (1985): a exagerada Porcina abusava de cores, estampas e acessórios, e ditou a moda dos turbantes multicoloridos na década de 1980.


Os exageros de Viúva Porcina em "Roque Santeiro", 1985 (Fotomontagem/Reprodução)

Outro sucesso de Regina Duarte foi “Rainha da Sucata” (1990): a novela contava a história de Maria do Carmo, uma mulher batalhadora que enriquece a partir do negócio de ferro velho de seu pai. Maria Carmo lançou moda com sua franja de corte reto e suas roupas de glamour nada discreto.


O visual 'brega-chique' de Maria do Carmo em "Rainha da Sucata", 1990 (Fotomontagem/Reprodução)

A estética brega possui outros representantes de sucesso, como Cauby Peixoto: o cantor atravessou diversas transformações de estilo, ao longo da carreira, indo dos ternos escuros característicos da moda masculina da década de 1950, passando pelas calças boca-de-sino dos anos 1970, até afirmar-se na extravagância de seus exuberantes paletós de peles, lantejoulas e paetês.
Em depoimento à TV Globo, no especial de 25 anos de sua carreira, em 1980, Cauby disse: “Eu sou um cantor que assumi o brilho, o paetê, o lamê. Eu gosto dessas coisas.” Em outra entrevista, concedida ao Vídeo Show em 1995, o cantor afirmou que “se eu me vestisse como Sinatra, não seria Cauby, não seria Brasil. Brasil tem que ter cor, muita cor.” (**)


O estilo de Cauby Peixoto sofreu transformações ao longo da carreira (Fotomontagem/Reprodução)

Transformando o brega em chique

A partir dos anos 2000, a moda viveu seu período experimental e democrático: não há limites para as composições de looks, e tudo é permitido. A conceituação do brega é subjetiva, variando de acordo com preferências estéticas individuais.
A ascensão das classes baixas ao mercado consumidor provocou a diminuição dos contrastes entre bairro nobre e periferia: o sertanejo deixou de ser a música do caboclo do interior, e hoje é alcunhado de “sertanejo universitário”, prestigiado dentro dos espaços outrora considerados de elite e sucesso entre jovens de classes abastadas. O funk carioca, inicialmente ligado ao mundo do crime das favelas, agora é marcado pela “ostentação” e o louvor de bens materiais de luxo, como carros, aparelhos tecnológicos e roupas. O visual colorido dos artistas tecnobregas Gaby Amarantos e Banda Uó é febre entre a nova juventude hipster.


Sertanejo universitário, funk ostentação, tecnobrega: o que antes era tido como brega, hoje é pop (Fotomontagem/Reprodução)

O exotismo das favelas e periferias brasileiras inspira artistas dos mais diversos segmentos: em 2003, os irmãos Fernando e Humberto Campana, expoentes do design de interiores, inspiraram-se na estética amontoada das favelas cariocas, e lançaram a cadeira “Favela”. Para a confecção da peça, a dupla utilizou fragmentos de madeira encontrados nas ruas, e técnicas de reaproveitamento de materiais adotadas pelas populações pobres.


Cadeira "Favela" - Irmãos Campana, 2003. A peça foi inspirada na estética das favelas cariocas e confeccionada a partir de fragmentos de madeira (Foto: Reprodução)

Mais recentemente, o estilista Riccardo Tisci trouxe para a coleção Pré-Primavera 2014 da Givenchy o estilo casual e street das favelas latinas: a coleção é intitulada “Favelas 74”, em referência ao ano de nascimento do estilista. Segundo Tisci, os homens das favelas latinas possuem maior liberdade sobre seus corpos e sua sexualidade, e não têm medo de ousar.


Riccardo Tisci para Givenchy - Coleção Pré-Primavera 2014 "Favelas 74", inspirada no estilo das favelas latinas (Fotomontagem/Reprodução)

Para Sidney Magal, “brega é o Brasil. E graças a Deus que o Brasil se assumiu como um país brega, porque durante muitos anos a falsa intelectualidade brasileira não aceitou a coisa popular do país, que é o que temos de mais rico. Surgiu o sertanejo pra mostrar que música boa também se faz no sertão, no interior, surgiu o pagode que vem das favelas, e o artista continuou sendo fiel ao seu público. Então eu acho que, mais do que tudo, ser brega é ser brasileiro.” (***)

Referências:


Foto de abertura: Regina Duarte em "Roque Santeiro", 1985 (Acervo de Orias Elias/Reprodução)

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2 comentários

  1. Rafinha, mais um texto primoroso, em que se aborda, não o aspecto polêmico do jogos do valores, ou a análise refinada, intelectual e sociológica de que pudesse resultar um texto enfadonho. Ao contrario, você trouxe à luz, com leveza, a ideia da democratização da estética. Parabéns!

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Criado em 2010 por Rafaella Britto, o blog Império Retrô aborda a influência do passado sobre o presente, explorando os diálogos entre arte, moda e comportamento.


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