Cinema e TV

“Não tem nada mais internacional que uma máfia de cafetões”

quinta-feira, setembro 28, 2017

Uma conversa entre Pierre Clémenti, Miklos Jancsó, Glauber Rocha e Jean-Marie Straub registrada por Simon Hartog em Roma, em Fevereiro de 1970.

Pierre Clémenti e Catherine Deneuve em A Bela da Tarde (La Belle de Jour, 1967), de Luís Buñuel (Foto: Reprodução/The Red List)


Simon Hartog: Bem, para começar, Rossellini uma vez disse que o cinema está morto. O que você acha, Glauber Rocha? (risos)

Glauber Rocha: Eu não concordo. Para mim... não sei o que Straub pensa. (risos)

Miklos Jancsó: Você está certo, é uma pergunta pessoal. Talvez o cinema esteja morto para Rossellini, infelizmente. Porque ele fez coisas maravilhosas.

Rocha: Realmente, há muita discussão sobre esse problema. Em termos de cinema e de teatro, também. Pierre Clémenti estava me falando semana passada sobre sua ideia de trocar o cinema por outra atividade... mas isso é um problema.

Hartog: Bem, na sua opinião, que função o cinema cumpre?

Jean-Marie Straub: Eu acho que o cinema só vai começar quando a indústria estiver morta. Estou esperando por isso o tempo todo, mas isso vai continuar por pelo menos outros vinte anos. E nesse sentido eu concordo com Rossellini.

Hartog: A indústria em que sentido, em termos de economia ou estrutura?

Jancsó: No sentido Hollywood...

Straub: Não só no sentido Hollywood porque a Europa é Hollywood agora. Hollywood está morta. Da mesma forma como o cinema americano está morto. O cinema que estava realmente enraizado na sociedade americana, que era profundamente americano, está morto. Então tudo o que Hollywood está tentando fazer no momento é colonizar a Europa, e não só a Europa... a indústria italiana teria desaparecido anos atrás, e a alemã também, se não tivesse tido uma grande entrada de capital americano. Esses homens estão sob a ilusão de que estão fazendo filmes internacionais. Ok, o que nós estamos tentando fazer é certamente não fazer filmes internacionais.

Hartog: O que exatamente vocês estão tentando fazer?

Straub: Estamos tentando fazer filmes que sejam totalmente opostos aos produtos internacionais. Pelo menos eu faço, não sei se os outros concordam.

Hartog: Me parece que o Novo Cinema está caminhando em duas direções: uma mais ou menos experimental, a outra política. É assim?

Straub: Como eu vou saber? Essas qualificações arbitrárias…

Rocha: Para mim é uma questão de experiência pessoal. Eu não gosto de generalizações. Pega o Miklos, por exemplo – ele é cineasta em um país socialista. Ele trabalha dentro de uma estrutura política e econômica diferente. E Jean-Marie e Clémenti são europeus que trabalham dentro de outra estrutura. E eu sou brasileiro, e embora eu tenha feito filmes com uma estrutura europeia, trabalho sempre dentro de outra estrutura. Onde eu quero chegar é que essa questão de morte do cinema ou dos problemas da indústria é diferente para nós...

Straub: Se não há um cinema na América Latina, é óbvio que deve começar.

Rocha: Para o Jancsó, onde há um cinema de estado, é outro problema. Fundamentalmente eu concordo com Jean-Marie, que a indústria existe sempre como uma ditadura poderosa. Mesmo na América do Sul, onde há indústrias nacionais, há a forte ditadura da indústria americana... Os americanos e os russos também. Porque você vê muitas co-produções italianas…

Glauber Rocha: "Sempre vai haver um sistema dominante". (Foto: Reprodução)


Straub: E os americanos são os que começaram o cinema brasileiro, isso é óbvio.

Rocha: Em toda a América Latina... na África o cinema é subdesenvolvido porque todo o território é ocupado pela indústria francesa, pelos cinemas ingleses e americanos. Ou seja, eu acho que toda a ideia de uma indústria é que é realmente muito perigosa. O cinema é a única atividade artística que depende de produção e consumo. Porque custa dinheiro: você não precisa de um produtor para escrever um poema ou um romance, embora você precise de um publicitário para imprimir, mas eu acho que o roteiro do filme não vale nada se não for gravado – não pode ser publicado. E esse é o maior problema para um cineasta hoje em dia – superar essa contradição. Eu não acho que o problema esteja confinado ao mundo capitalista – existe no mundo socialista também.

Jancsó: É o mesmo problema de lá de onde eu vim... Porque para nós dois (para Rocha), o cinema significa expressão. Mas nas mãos dos produtores, que são os únicos disponíveis. No nosso país nós estamos nas mãos do estado – se torna algo diferente. Então meus amigos, camaradas, precisamos refletir com cuidado sobre o que estamos dando para o público de massa. Para fazer o seu tipo de filme, Glauber, na Hungria, você tem quase os mesmos problemas...

Straub: Em resumo, é a mesma mentalidade dos burocratas da TV italiana, que tentam justificar o rendimento medíocre deles reclamando do contadino...

Jancsó: Sim, é verdade. Porque você está sempre com medo, sempre com medo. Há uma grande diferença. É isso que é a indústria... Todas essas coisas estão em nós, também. Nós na Hungria participamos no poder do Estado. Então nós podemos conflitar juntos para fazer alguma coisa. Não é o mesmo que aqui, mas no sentido de que há coisas fortemente semelhantes entre os produtores...

Straub: Mas há alguma coisa muito diferente. Por exemplo, tem um cineasta iugoslavo que eu gosto muito chamado Matjas Klopcic. Ele faz filmes que são... Sei lá, algo entre Cocteau e Mallarme. Bem, ele fez um, a princípio, chamado A Story that Doesn’t Exist, e depois outro, chamado On Paper Wings (1967). O primeiro foi um fiasco total, mas ele foi capaz de fazer o segundo logo em seguida, e acho que acabou de terminar um terceiro. Não dá para dizer que os filmes dele não são adequados para uma audiência de massas – não dá para dizer que seriam bem sucedidos. Embora o primeiro filme tenha sido mal sucedido ele pôde fazer o segundo sem concessões ao mito da massa pública que não existe. Esse tipo de coisa não pode acontecer no cinema ocidental.

Hartog: Hoje o cinema virou de certa maneira um tipo de arte para a minoria. Isso incomoda vocês? Vocês acham que é verdade?

Straub: Eu não sei o que é uma minoria... Lenin uma vez respondeu essa pergunta, quando ele disse que a minoria de hoje será a maioria de amanhã. Então não significa nada... Mas aí a gente não consegue saber... Se os filmes que são acusados de serem feitos para a minoria tivessem as mesmas facilidades de distribuição e publicidade que os filmes chamados do mercado de massa, o problema não existiria. Mas não são.

Rocha: Sobre essa questão de minoria de audiência, tem uma coisa que eu queria dizer. Existe uma atitude muito paternalista para com o público. Você acha por exemplo intelectuais de esquerda que são escritores, não cineastas, dizendo que estamos fazendo filmes que são difíceis para o público. E esse é um ponto de vista muito paternalista. Porque você não pode decidir sem pesquisa... Equivale a dizer que só os burgueses são sensíveis ou inteligentes o bastante para entenderem um filme. Há um mecanismo de distribuição impondo certo tipo de produto cinematográfico que corrompeu o público. A pior coisa que eu ouvi – vou ter que dizer isso de novo porque parece que as pessoas estão cegas – é que... a primeira coisa é que os filmes falam uma linguagem muito precisa. O público está colonizado por um tipo de linguagem imposto por Hollywood, que infelizmente é a mesma imposta pelo regime russo. O público não tem a chance de escolher porque a estrutura de distribuição hoje em dia nos países capitalistas e socialistas impõe um tipo de produto. E os críticos têm o mesmo julgamento quando dizem que filmes são incompreensíveis.

Miklos Jancsó: "Temos que ir às fábricas, dar nossos filmes ao povo" (Foto: Reprodução)


Straub: Os críticos que têm essa linguagem não são além de putas trabalhando com cafetões, só isso...

Rocha: Sim, porque há uma colaboração entre os críticos e os intelectuais paternalistas de esquerda que dizem que não entendem: eles banem esses cineastas. Mas basicamente, eu sinto que os diretores que trabalham fora da indústria são muito mais democráticos, muito mais revolucionários, uma vez que eles respeitam mais o público. Eu tento fazer filmes difíceis – não acho que estou sendo paternalista com o público. Eu acho que os camponeses, estudantes, até mesmo a nobreza – todo mundo que você imaginar – pode entender um filme... Principalmente porque ‘ler’ um filme é um processo complicado. Certos filmes, como aqueles que têm uma estrutura dialética ou aberta, criaram uma linguagem em oposição à linguagem da colonização. Então nesse ponto não podemos ser paternalistas com o público. Por exemplo, outro dia na TV eu vi uma discussão em que intelectuais estavam dizendo que Pasolini faz filmes muito difíceis para o público. Depois alguns trabalhadores de Milão falaram, e as críticas deles foram muito mais perceptíveis do que as dos intelectuais oficiais. Mesmo eles dizendo coisas como: ‘Eu não gostei da atuação do Gerson, da voz da Maria Callas, eu gostei do roteiro’... Você vê que as pessoas sabem falar. Pegue os filmes de Jean-Marie – The Chronicle of Anna Magdalena Bach (1967) por exemplo. Mas foi banido por esse complexo a partir do momento em que os críticos disseram: ‘É difícil’. Os distribuidores não vão tocar nos filmes que são mais acessíveis para o público. Você tem que lutar contra essa ditadura absoluta dos distribuidores...

Jancsó: É a ditadura dos petit cons, dos pequeno-burgueses em qualquer lugar do mundo. É uma ditadura bem-organizada... Por cinquenta anos, agora deveríamos estar destruindo, simplesmente destruindo... Nunca somos permitidos de dar alguma coisa ao público. Porque é uma ditadura individual e ao mesmo tempo interna. Não está dividida pelo mundo. 

Straub: Não tem nada mais internacional que uma máfia de cafetões. Sim, tudo se resume a que nossos filmes tenham as mesmas oportunidades que o resto. Nada mais. Se as pessoas fossem capazes de escolher entre um filme do Rocha e um de outro, alguém da indústria, se eles realmente pudessem escolher, de forma que os filmes do Rocha tivessem a mesma publicidade e fossem exibidos nos cinemas acessíveis, quem sabe o que poderia acontecer? Não sabemos. Porque nunca se tentou.

Rocha: O princípio do circuito de art-house hoje é reacionário, porque impõe um certo tipo de filme que tende a criar seu próprio mercado fechado. Desde o roteiro até a projeção, um filme é destinado às ‘art-houses’ e isso é muito burguês, muito reacionário, muito elitista... E o público que vem para ver o filme vem com uma atitude muito esnobe.

Jean-Marie Straub e Glauber Rocha (Foto: Reprodução)
Straub: Mas aí você não pode esperar que o público de massas vá ver esses filmes, não dá para penetrar no gueto, simplesmente porque é impenetrável. E além do mais, no cinema de art-house é que a projeção é pior. Porque os distribuidores de art-house não entenderam que o cinema é uma arte muito material, mesmo uma arte materialista, e arte ‘não é suficiente em si mesma’. Quanto mais um filme se diz ‘arte’, pior ele é projetado. Então tem esse paradoxo. Eles dizem, é só um filme de arte, não vale a pena arranjar encrenca, é projetado de qualquer jeito, a imagem é chuviscada, não dá pra ver nada, ninguém respeita a proporção da tela, não dá pra ouvir o som... às vezes parte da imagem está fora da tela, pra não falar do som, você não ouve nada. OK. E aí eu concordo com o Glauber quando ele diz que você não pode dizer como os camponeses e trabalhadores vão reagir aos nossos filmes. Eu concordo com ele em que o cinema é precisamente para eles, isso corresponde a alguma coisa... O cinema deriva seu impacto das experiências do dia a dia dos trabalhadores e camponeses, em suas vidas normais, enquanto os intelectuais não têm experiências, fica entendido que eles nem sequer vivem. Por isso os filmes são vazios para eles. Enquanto os outros veem nos filmes algo que os preocupa, dificuldades que eles têm que superar. Dia após dia.

Rocha: Eu não sei como é na Europa, mas no Brasil as pessoas têm uma capacidade extraordinária de analisar a realidade – realidade política, eventos sociais, etc. Eles têm produzido uma cultura musical incrível – na verdade a cultura popular no Brasil é realmente produzida pelo povo. É uma cultura extraordinária... A história do Brasil é criticada de uma forma mais moderna pela cultura popular do que pela cultura burguesa. Porque essas pessoas não seriam capazes de entender uma peça ou um filme que debate coisas no nível mais polêmico?

Straub: Quem trouxe o Nazismo para a Alemanha? Não foi o povo. O povo só seguiu depois, quando o terror já tinha sido estabelecido. Os intelectuais foram os responsáveis. Os partidos que traíram o povo, as igrejas, os intelectuais, pessoas como Heidegger; eles foram os que fizeram dos alemães nazistas. Mesmo em 1942 Hitler estava sendo apedrejado em Cologne. O povo resiste muito mais do que as elites, ou os intelectuais, que se rendem logo, que proveram o nazismo com seus materiais, que foram responsáveis pelo terror que mais tarde infligiu nas pessoas. A CRS (polícia de revolta francesa) é a mesma coisa.

Jean-Marie Straub: "Não tem nada mais internacional que uma máfia de cafetões" (Foto: Reprodução)


Hartog: Jancsó, é o mesmo problema na Hungria? Seus filmes são mostrados nos guetos?

Jancsó: Sim, infelizmente, quase o mesmo... mas não exatamente. Preciso pensar sobre isso. A industrialização é a mesma, mas não séria. Não é séria porque é um país muito pequeno. E ao mesmo tempo é muito democrático, o que significa que, como eu expliquei, todo mundo participa no poder do Estado. Então quando eu brigo por alguma coisa, diga-se, filmes difíceis para o público em geral, eu brigo com as armas dos outros também. Então é outra estrutura... mas fundamentalmente tem sempre os mesmos problemas, infelizmente... 

Pierre Clémenti: Quando o povo descobrir o cinema, vai mudar criando seu próprio cinema.

Straub: E é exatamente isso que o povo não é permitido de descobrir neste momento. Porque aqueles canalhas sabem, eles têm bom faro pelo menos. E também é perigoso quando os críticos intelectuais começam a dizer que o que você está fazendo é para uma minoria etc. Eles se alinham com essa proibição. Mas quando o povo – não gosto da palavra ‘massas’ – descobrir o cinema, aí alguma coisa vai acontecer...

Jancsó: É quase a mesma deslealdade dos intelectuais quando confrontaram o Nazismo. Porque está claro que os críticos, os intelectuais, estão do lado do...

Straub: Inconscientemente. Sem se darem conta disso, eles apoiam o sistema reproduzindo a mesma velha estupidez...

Clémenti: Quando as pessoas veem um filme, elas experimentam um tipo de identificação, e saem do cinema sob a influência da estrela do filme. Acho que quando as pessoas começarem a filmar com suas próprias câmeras, quando as apontarem para as suas próprias famílias, suas casas, seus trabalhos, algo virá em suas mentes, porque elas vão descobrir que não é como nos filmes.

Straub: Elas vão descobrir que tudo o que é mostrado nos filmes é completamente irrelevante, que é só retórica. É retórica que se torna vácuo. É o que eu chamaria de pornografia. As pessoas vão ver que quando a pornografia é jogada para eles com o nome de arte, o cinema comercial não é nada além de retórica, pornografia, ilusão.

Rocha: O terrorismo dirigido ao cinema é terrível. É ruim a partir do momento em que você classifica um filme como ‘art-house’. Porque ninguém fala de pinturas ‘artísticas’, ou romances, ou poemas – ainda assim eles falam de filmes ‘artísticos’. Já é um julgamento pejorativo... com contradições... que vem como o terrorismo imposto por interesses econômicos. E há uma coisa muito pior: a total ignorância dos produtores, das pessoas responsáveis por fazerem os filmes. Eles são totalmente analfabetos quando se trata de filmes – nem todos, mas 99%. Eles nem sabem a mecânica básica da coisa...

Jancsó: Não, não é por causa disso. Para essas pessoas, o cinema é algo completamente diferente. É poder, é...

Clémenti: Para as pessoas, o cinema é o que elas não veem na TV. Porque se a TV as trouxesse o que elas geralmente têm no cinema, mais cedo ou mais tarde elas não sairiam de suas casas. Elas iriam direto para a fábrica. A TV será o novo Deus-Máquina que vai oferecer, realizar cada um de seus desejos. O cinema irá desaparecer. Esta é a possibilidade porque eu tenho certeza de que se pessoas inteligentes assumissem o controle da TV, seria uma coisa muito poderosa, até mesmo fabulosa, colossal. Quando a TV descobrir todos os seus poderes, vai colocar todos num gueto, todos os que trabalham. Vai alienar nações inteiras, as pessoas não vão mais sair, exceto para ir à fábrica – elas vão ficar completamente alienadas pela máquina, que vai substituir a religião, as histórias, aquelas belas histórias. Eu acho que a única arte capaz de lutar contra isso hoje em dia é o cinema. Pelo menos o cinema como uma extensão lógica do que isso é hoje.

Pierre Cleménti: "Quando o povo descobrir o cinema, vai mudar criando seu próprio cinema" (Foto: Reprodução)


Hartog: Há muitos jovens hoje em dia que fazem filmes fora da estrutura da indústria. Eles afirmam que a ideia de um filme de 90 minutos é uma ideia comercial. Então eles fazem filmes underground, ou jornais cinematográficos, ou algo parecido. Você acha essa uma direção inteligente ou não?

Clémenti: Eu acho que mesmo no campo do cinema positivo, há elementos negativos. Quando as pessoas veem um filme underground, eles de repente percebem que poderiam fazer o mesmo, ou melhor. E esse é o estímulo que eles precisam para comprar uma câmera pequena. Esses jovens cineastas que levam um ou dois anos para achar dinheiro para terminar seus filmes... Eu sinto que uma câmera Super 8 ou uma 16mm os capacitam para fazer qualquer filme que eles quisessem e, só por causa disso, o cinema underground é revolucionário. E o cinema underground é positivo também na maneira como é lançado... fazer algo que chegue à consciência humana.

Rocha: Eu concordo com o Pierre em quase tudo, mas tem formas de se enxergar o cinema. Uma como forma de expressão, como a literatura, a que todos têm acesso, e a outra como profissão. Quando as câmeras forem fáceis de adquirir como as máquinas de escrever ou as canetas, o povo vai usar sons e imagens até para escrever cartas. Mas na literatura você tem pessoas para escreverem poemas, ensaios, novelas, peças... Eu, eu sou um profissional.

Straub: E foi por essa razão que eu quis fazer meu último filme (Othon, 1970) em 16mm. Apenas para pontuar que não é alguém interpretando tal e tal papel em tal e tal filme, mas isso qualquer um pode fazer. Não é difícil – qualquer pessoa poderia ver um filme como aquele.

Rocha: Você precisa ver esse filme. É muito importante. É uma revolução da tecnologia...

Straub: E não havia cenários – gravamos tudo do lado de fora. O único perigo do cinema underground é que é underground. E já tem monopólios que querem assumir, transformar...

Clémenti: Mas isso já aconteceu. Os livros acabaram. Os livros vão desaparecer para dar lugar a uma ‘biblioteca’ de filmes em Super 8. Nos Estados Unidos agora há câmeras Super 8 que vão se desenvolver a partir da 1000 ASA e se ampliar para 35mm. Então tenho certeza de que a indústria do cinema vai mudar completamente, e vai passar por isso...

Straub: Vai colonizar o underground…

Pierre Clémenti em "Pocilga" ("Porcile", 1969), de Pier Paolo Pasolini (Foto: Reprodução)

Rocha: Da mesma forma que você não pode mostrar um filme underground na Broadway, você não pode levar um filme de Hollywood para os campi americanos. Porque é aí que o mercado underground já...

Clémenti: Você pode mostrar filmes underground em todos os campi americanos.

Rocha: Mas já, você vê, é um sistema, uma indústria...

Clémenti: É uma sociedade alternativa que ainda está em estágios de formação, e que ataca o sistema – não importa se é negativo ou positivo. No momento, é positivo.

Rocha: Não, no momento eu sinto que tudo está contra Hollywood. Isso é muito positivo...

Clémenti: Eu acho que os gigantes como a Paramount estão desmoronando. Por quê? Por que as pessoas têm feito filmes de baixo orçamento e ganhado milhões com eles. Os grandes estúdios não sabem mais o que fazer. Estão acabados.

Rocha: Mas eu acho que a crise na indústria americana é só uma crise ilusória, porque no fundo está tudo muito bem...

Clémenti: Não, está tudo fodido, o cinema americano... até que se encontre, até que se reinvente uma nova linguagem fílmica. Mas nas atuais condições, todos os grandes estúdios estão aniquilados.

Straub: Sim, eles estão fodidos há cinco anos. E vai levar mais dez para eles desistirem.

Jancsó: Esse é um grande problema para nós – nós já estamos bloqueados pelas distribuidoras mundiais. É a verdade, é óbvio. Eu não sei o que deveríamos fazer. Mas temos que fazer alguma coisa. Temos que destruir…

Rocha: Então no fim se torna um problema político.

Clémenti: No momento eu posso dizer que dez milhões de cópias de uma gravação estão sendo produzidas, e haverá...

Rocha: No ano que vem com os cassetes chegando ao mercado, vai haver um sistema de distribuição de filmes semelhantes ao dos livros.

Clémenti: Sim, vai haver esse sistema, mas será só para os filmes de consumo, ou seja, os filmes que contaminaram todo mundo, toda a natureza humana. Mais e mais o cinema está se tornando uma indústria de cretinização. Exceto por um cinema maioritário que está relacionado aos cineclubes e esse tipo de coisa, onde tudo que é projetado é completamente negativo, porque você não consegue ouvir o som, a imagem é pesada, as imagens são terríveis. Por quê? Porque os jovens distribuidores não têm dinheiro para fazer boas imagens, milhões de cópias. Acredito que estamos à beira do fim da indústria do cinema... Todas essas organizações revolucionárias que tem surgido. O cinema na França está se tornando mais e mais alienado, mais em harmonia com a TV, com os canais de televisão. E eu sinto que um cinema que está realmente tentando se relacionar com o povo, alterar sua consciência, será puxado para um lado. O trabalhador que quer comprar um livro, irá comprar um filme. Mas isso será isolado, porque a sociedade sabe muito bem que...

Rocha: Eu acho que sempre vai haver um sistema dominante. Até no campo da literatura é a mesma coisa. Tem Joyce, tem o malavita...

Straub: Mas a dominação será mais intensa. Chegará ao ponto em que...

Rocha: Mas o problema é esse. Não importa quem é o publicitário. Até mesmo no Brasil ele corre risco hoje em dia – seja quem for que se depare com um jovem autor desconhecido que possa escrever um romance muito melhor e mais moderno do que Ulisses. Mas até o Joyce virou commodity, com um valor de mercado, nessa sociedade. O problema reside na estrutura da sociedade capitalista, e infelizmente na sociedade socialista também. Remete de volta à política geral de consumo. Você pode cretinizar o público a diversos níveis. Porque quando o público tiver atingido certo estágio de consumo de produção intelectual, é aí que ele precisa de estímulos muito mais críticos, mais dialéticos e revolucionários, para abrir as portas para o conhecimento da experiência humana. E é nesse ponto que o sistema irá sempre se impor, porque se torna uma questão de estrutura...

Cena de "My Way Home", de Miklos Jancsó (1968) (Foto: Reprodução)

Straub: O sistema tem seu próprio instinto de autopreservação...

Clémenti: Estou começando a sentir que é mais e mais necessário ir até as pessoas, e não esperar que elas venham até você. Por quê? Por causa do fato de que um trabalhador passa de oito a nove horas por dia em uma fábrica, e simplesmente não tem chance de dizer, eu preciso ver tal e tal filme. O sistema inteiro precisa ser reconstruído.

Straub: Mas essas pessoas são relógios ambulantes, ambulantes...

Clémenti: Não, seus filmes serão sempre feitos para uma minoria privilegiada de intelectuais, que serão os únicos a vê-los. Enquanto os filmes deveriam ser para as pessoas, as milhões de pessoas...

Straub: Mas foi por isso que eu gravei Corneille (Othon) em dezesseis... eu tinha o sonho louco de sair por aí o mostrando nas fábricas. Mas é muita abstração, já que você não consegue carregar as pessoas de filmes enquanto elas estiverem trabalhando nove horas por dia...

Clémenti: Eu acho que esses filmes deveriam ser controlados pelas cooperativas, que acabaram de ser formadas na Europa agora e já existem na América.

Straub: Sim, mas se vamos ter essas cooperativas, precisamos começá-las agora, porque há outros que já estão tentando assumir. Cassavetes e todos esses...

Clémenti: Porque toda essa coisa de filmes de arte será sempre para uma minoria...

Rocha: Mas não é a questão de ir às fábricas, porque se você levar os seus filmes para as pessoas de lá, você tem que perceber que não são as mesmas pessoas que vão ao cinema. São pessoas condicionadas por isso. É uma questão de uma revolução cultural muito mais profunda que precisa ser trazida por uma revolução política. Esse é o grande problema que estamos enfrentando hoje, porque afinal todo mundo fala de sociedade tecnológica, de sociedade de consumo. É a mesma coisa na Rússia e em Nova York. Essa discussão por exemplo é totalmente inútil, somos apenas algumas pessoas confrontando um sistema que não está nem aí...

Clémenti: As ações revolucionárias de toda uma geração americana, a juventude da América, tem derrubado um sistema que foi uma das maiores forças da América. Se o povo foi capaz de derrubar um sistema, significa algo positivo. Enquanto na Europa, nada acontece.

Rocha: Não concordo.

Clémenti: Eu acho que uma geração americana nos deixou uma herança, e seria estúpido não lucrar com isso...

Rocha: Espera! Eu li uma entrevista com John Frankenheimer alguns anos atrás – acho que foi na Cahiers ou no Positif – e perguntaram o que ele achava da Nouvelle Vague. Ele respondeu como qualquer trabalhador da indústria americana: ‘Logo que acharmos certos experimentos de Godard... interessantes, poderemos fazer as mesmas coisas com Hollywood. Quer dizer, tudo no nível da linguagem cinemática que tem sido criada desde o início da Nova Onda, o início do neorrealismo, coisas assim.’ Não importa qual diretor nos Estados Unidos – Peter Yates, Mike Anderson – eles produzem essa... brincadeira em torno de flashbacks, técnicas de edição... O underground será absorvido por isso. Por exemplo, Midnight Cowboy (1969) de John Schlesinger – é uma invenção comercial da Nouvelle Vague e da nova linguagem. Porque eles estão em crise... porque Easy Rider (1969) fez fortuna. Eles industrializaram quase imediatamente, absorveram, entende? O que estou tentando dizer é isso, que há esse sistema que tem que ser destruído. Eu disse que essa discussão é inútil, porque todos nós queremos isso, mas não podemos fazer nada... Os ativistas políticos trabalham nas áreas de economia e política... Eles não se importam com o problema.

Straub: Mesmo que não possamos derrubar, podemos pelo menos foder o sistema o máximo que pudermos – só irmos contra as regras, isso é tudo. Godard está certo nesse sentido. Mas eu gostaria de voltar a algo que o Jancsó disse agora há pouco. Glauber assinalou que o que estava acontecendo aqui na Europa e também na Europa Oriental é o monolitismo. E depois – Miklos pôs isso de um jeito bacana – ‘Nós estamos lutando da mesma forma, só que com os braços de outros’. Agora eu queria saber se estou certo em pensar que na Hungria ainda há uma abertura para os diálogos... Eu queria que ele explicasse essa frase.

Jancsó: Agora estamos enfrentando os reais problemas do cinema. Agora tenho certeza de que ajudar a nós mesmos significa ajudar aos outros, e que há uma solução: conflito. Então, se nós nos organizássemos para ir às fábricas, para dar nossos filmes ao povo, aí não depende de discussão, mas da nossa organização. Mas com a gente é outra situação. No nosso país você pode fazer o que quiser, ou quase... na indústria do cinema. Mas nessa situação também há uma crescente pequena-burguesia. Nós e o público estamos diante de grandes problemas, mas o cinema continua. E por isso contamos com nossa organização.

Straub: Sim, mas por exemplo, os filmes que você faz têm uma distribuição comercial normal?

Jancsó: Claro, mas…

Straub: OK, seus filmes na Hungria têm os mesmos direitos dos chamados filmes comerciais.

Rocha: Em uma sociedade socialista há uma evolução com respeito à estrutura capitalista. Nesse ponto não acho que haja nada para discutir.

Straub: Sim, mas é útil assinalar, porque o povo caiu no hábito de dizer o contrário. E é bom lembrá-los...

Rocha: Eu acho que o Miklos é muito honesto quando fala sobre esse problema. Você vê muitos diretores socialistas adotarem uma atitude crítica para consigo mesmos, uma atitude pequeno-burguesa, que faz com que eles venham com críticas pitorescas. Mas nesses filmes Miklos tenta evitar essas críticas pitorescas, e levar a discussão para um nível mais polêmico. Essa eu acho a característica mais importante do cinema dele, mesmo ao nível da linguagem. Eu acho que o cinema socialista, o cinema da Europa Oriental, se tornou vítima das críticas pequeno-burguesas, esquemáticas, burocráticas – o tipo que você vê em muitos filmes checos, russos, e húngaros também. Como os filmes poloneses se autoproclamando revolucionários porque estão um pouquinho à direita...

Straub: Mas são filmes social-democratas...

Rocha: Eu acho que no cinema socialista, os filmes mais importantes são os que lidam com uma discussão dialética do socialismo. Se os burocratas não entendem, é problema deles...

Straub: Ou filmes cheios de cortes que parecem ser só poéticos – isso é quase uma blasfêmia.

Othon Bastos em "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha (1964) (Foto: Reprodução)

Hartog: Você acha que o cinema desempenha um papel político?

Jancsó: Que pergunta! (risos)

Straub: É claro que desempenha um papel político. Tudo é político, tudo o que você faz na sua vida é político. Como o cinema, que é a arte mais entrelaçada com a vida, é a arte mais política. Não querendo dizer que os chamados filmes ‘agitprop’ [propaganda] são mais políticos – frequentemente eles são menos políticos. Mas o cinema é arte política por excelência.

Rocha: O cinema americano é fortemente político. O cinema americano é culpado pela colonização do Terceiro Mundo. O cinema americano criou a estrutura para o complexo de inferioridade nacional dos povos do Terceiro Mundo. No nível político nenhum cinema no mundo é eficiente como o cinema americano. É um reflexo da ideologia do Wall Street, aplicada com um fantástico know-how.

Straub: Conheci alguns intelectuais de esquerda que sonharam – que eram severamente anticomunistas, é claro, do jeito que você deve saber – que sonharam em usar os meios da indústria americana contra o sistema capitalista. Isto é, usar o cinema de uma maneira maquiavélica. E isso porque eles entenderam perfeitamente que o cinema americano é politicamente muito eficiente. Por exemplo, um filme como The Naked and the Dead (1958), de Raoul Walsh, que é virulentamente antimilitarismo (não gosto dessa palavra) e que nunca passou pela censura europeia.   

Rocha: Paths of Glory (1957) do Kubrick continua banido na França, só porque diz algumas coisas más sobre o exército francês. Lá, a política é sempre direita ou esquerda...

Straub: Por exemplo, os filmes de John Ford são profundamente políticos.

Rocha: O problema volta a ser: o que é cinema político? Parece a principal preocupação do Godard hoje em dia. Em todos os últimos filmes dele ele tentou reconsiderar, trabalhar numa definição do que é cinema político. Agora ele está discutindo se é Dziga Vertov ou se é Eisenstein. Isso é muito importante. Mas há tantas estruturas sociais diferentes, que você pode falar sobre vários cinemas políticos, ou várias formas de se fazer filmes políticos. E não tem por que se estressar muito com isso, já que toda imprensa maquia a guerra psicológica em que vivemos hoje, essa guerra de informação... e por que não, a guerra armada. Porque a propaganda logística é a chave para o conflito armado, para o conflito revolucionário, entende... É sempre político... o cinema, a imprensa, a televisão, os panfletos – qualquer ação física etc... Eu acho que a maneira como as pessoas falam sobre cinema, política, é um vício crítico, talvez dos cineastas... E isso os está colocando numa posição superior. É o mesmo que dizer, fazemos filmes então temos uma ferramenta muito poderosa...

Straub: Exato. ‘Strumentalizzare il cinema’ (Instrumentalizar o cinema), como dizem alguns italianos, é falso também. Isso acontece algumas vezes em que um filme inteiro... vamos dizer poético... desempenha um papel político mais do que um filme cujo objeto é obviamente político. O que não dizer que um filme poético teria o impacto d’O Capital de Marx. Mas um filme assim pode trazer sua expressão novamente, desempenhar um papel muito mais político do que algum esquerdinha social-democrata...

Hartog: Vocês acham que o cinema pode mudar alguma coisa?

Straub: Sim! O cinema muda as coisas de um jeito que nada mais consegue, do jeito que um panfleto político consegue, só que mais. Não é uma questão de tornar o cinema um mito – é só que o cinema está mais perto, mais entrelaçado com a vida, e também com a política. Mas de nada vale sonhar, ou querer acreditar... O Glauber colocou isso muito bem...

Clémenti: Mas o cinema é capaz de mudar as pessoas, e se assim é, pode mudar a vida, pode ser um...

Straub: Renoir disse, eu fiz La Grande Illusion (1937) e não parou a guerra que estava por vir. E ainda assim as pessoas que viram La Grande Illusion...

Clémenti: Não é mito que toda uma geração americana criada na televisão, que exibia filmes antigos de outra geração, mudou todo o estilo de vida, de pensar sobre as coisas, sobre aquela geração. É nesse sentido que eu acho que o cinema tem uma ação muito positiva, na medida em que pode alterar ou despertar a consciência.

Rocha: Essa discussão tende a ser ridícula às vezes, porque você poderia ter tido o mesmo tipo de discussão em qualquer momento da história, sobre a novela, a poesia, a ópera, a música... Agora é o cinema, um fato tecnológico. Straub mencionou Marx e O Capital. Não foi a questão do livro, ou da escrita, mas sim do homem que escreveu um livro chamado O Capital. Não teve nada a ver com o livro. O cinema é um meio de comunicação tecnológica. Quando usado como expressão, torna-se particularizado nas mãos de poucas pessoas que podem fazer algo poético, didático, ou agitado. Não acho que seja possível definir o cinema em termos gerais sem mistificá-lo, porque basicamente, cineastas leem livros. Por exemplo, aqueles que lutam contra a cultura hoje em dia, aqueles que dizem: tudo vai desmoronar – eles aprenderam isso nos livros. Claro que você tem que se manter informado, é muito importante...

Clémenti: Mas essas pessoas lerão cada vez menos, e se isso acontecer, elas verão cada vez mais filmes. Porque um filme tem mais a oferecer que um livro. Ainda somos leitores, somos uma geração de leitores. Temos Marx, temos Lenin, mas pense daqui a 50 anos. Os cineastas irão muito além de Lenin, de Karl Marx. Isso é normal. É evolução, evolução natural…

Straub: Porque seu único meio de expressão será o cinema.





Esta discussão foi transcrita por Patrick Letessier, traduzida para o inglês por John Mathews e publicada na revista Cinematics no. 4, em 1970. Traduzido para o português por Rafaella Britto do original disponível em www.rouge.com.au.

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