Crônica de Lima Barreto, originalmente
publicada no jornal carioca Gazeta da Tarde, em 27 de abril de 1911
É de uso que, nas sobremesas, se façam brindes
em honra ao aniversariante, ao par que se casa, ao infante que recebeu as águas
lustrais do batismo, conforme se tratar de um natalício, de um casamento ou
batizado. Mas, como a sobremesa é a parte do jantar que predispõe os comensais
a discussões filosóficas e morais, quase sempre, nos festins familiares, em vez
de se trocarem idéias sobre a imortalidade da alma ou o adultério, como
observam os Goncourts (1), ao primeiro brinde se segue outro em honra à mulher,
à mulher brasileira.
Todos estão
vendo um homenzinho de pince-nez, testa sungada, metido numas roupas de
circunstâncias, levantar-se lá do fim da mesa; e, com uma mão ao cálice, meio
suspenso, e a outra na borda do móvel, pesado de pratos sujos, compoteiras de
doce, guardanapos, talheres e o resto – dizer: “Peço a palavra”; e começar
logo: “Minhas senhoras, meus senhoras”. As conversas cessam; Dona Lili deixa de
contar a Dona Vivi a história do seu último namoro; todos se aprumam nas
cadeiras; o homem tosse e entra em matéria: “A mulher, esse ente sublime...” E
vai por aí, escachoando imagens do Orador
familiar, e fazendo citações da mulher
brasileira, quer como mãe, quer como esposa, quer como filha, quer como irmã.
A enumeração não foi completa; é o que o meio
não lhe permitia completá-la.
É uma cena que se repete em todos os festivos
ágapes familiares, às vezes mesmo nos de alto bordo.
Haverá mesmo razão para tantos gabos? Os
oradores terão razão? Vale a pena examinar.
Não direi que, como mães, as nossas mulheres
não mereçam esses gabos; mas isso não é propriedade exclusiva delas e todas as
mulheres, desde as esquimós até às australianas, são merecedoras dele. Fora
daí, o orador estará com a verdade?
Lendo há dias as Memórias, de Mme. D’Epinay, tive ocasião de mais de
uma vez constatar a floração de mulheres superiores naquele extraordinário
século XVIII francês.
Não é preciso ir além dele para verificar a
grande influência que a mulher francesa tem tido na marcha das idéias de sua
pátria.
Basta-nos, para isso, aquele maravilhoso
século, onde não só há aquelas que se citam a cada passo, como essa Mme.
d’Epinay, amiga de Grimm, de Diderot, protetora de Rousseau, a quem alojou na
famosa “Ermitage” (2), para sempre célebre na história das letras; e Mme, du
Defant que, se não me falha a memória, custeou a impressão do Espírito das leis. Não são unicamente essas. Há mesmo um
pululamento de mulheres superiores que influem, animam, encaminham homens
superiores do seu tempo. A todos o momento, nas memórias, correspondências e
confissões, são apontadas; elas se misturam nas intrigas literárias, seguem os
debates filosóficos.
É uma Mme. de Houdetot (3); é uma marechal de
Luxemburgo; e até, no fundo da Sabóia, na doce casa de campo de Charmettes, há
uma Mme. de Warens que recebe, educa e ama um pobre rapaz maltrapilho, de quem
ela faz mais tarde Jean-Jacques Rousseau.
E foi por ler Mme. d’Epinay e recordar outras
leituras, que me veio pensar nos calorosos elogios dos oradores de sobremesas à
mulher brasileira. Onde é que se viram no Brasil, essa influência, esse apoio,
essa animação das mulheres aos seus homens superiores?
É raro; e todos que o foram, não tiveram com
suas esposas, com suas irmãs, com suas mães, essa comunhão nas idéias e nos
anseios, que tanto animam, que tantas vantagens trazem ao trabalho intelectual.
Por uma questão qualquer, Diderot escreve uma
carta a Rousseau que o faz sofrer; e logo este se dirige a Mme. d’Epinay,
dizendo: “Se eu vos pudesse ver um momento e chorar, como seria aliviado!” Onde
é que se viu aqui esse amparo, esse domínio, esse ascendente de uma mulher; e,
entretanto, ela não era nem sua esposa, nem sua mãe, nem sua irmã, nem mesmo
sua amante!
Como que adoça, como que tira as asperezas e
as brutalidades, próprias ao nosso sexo, essa influência feminina nas letras e
nas artes.
Entre nós, ela não se verifica e parece que
aquilo que os nossos trabalhos intelectuais têm de descompassado, de falta de
progressão e harmonia, de pobreza de uma alta compreensão da vida, de revolta
clara e latente, de falta de serenidade vem daí.
Não há num Raul Pompéia influência da mulher;
e cito só esse exemplo que vale por legião. Se houvesse, quem sabe se as suas
qualidades intrínsecas de pensador e de artista não nos poderia ter dado uma
obra mais humana, mais ampla, menos atormentada, fluindo mais suavemente por
entre as belezas da vida?
Como se sente bem a intimidade espiritual,
perfeitamente espiritual, que há entre Balzac e sua terna irmã, Laura Senille,
quando aquele lhe escreve, numa hora de dúvida angustiosa dos seus tenebrosos
anos de aprendizagem: “Laura, Laura, meus dois únicos desejos, ‘ser célebre e
ser amado’, serão algum dia satisfeitos?” Há disso aqui?
Se nas obras dos nossos poetas e pensadores,
passa uma alusão dessa ordem, sentimos que a coisa não é perfeitamente exata, e
antes o poeta quer criar uma ilusão necessária. Seria melhor talvez dizer que a
comunhão espiritual, que a penetração de idéias não se dá; o poeta força as
entradas que resistem tenazmente.
É com desespero que verifico isso, mas que há
de fazer? É preciso ser honesto, pelo menos de pensamento.
É verdade que os homens de inteligência vivem
separados do país; mas se há uma pequena minoria que os segue e acompanha,
devia haver uma de mulheres que fizesse o mesmo.
Até como mães, a nossa não é assim tão digna
dos elogios dos oradores inflamados. A sagacidade e agilidade de espírito
fazem-lhes falta completamente para penetrar na alma dos filhos; as ternuras e
os beijos são estranhos às almas de cada um. Sonho do filho não é percebido
pela mãe; e ambos, separados, marcham no mundo ideal. Todas elas são como
aquela de que Michelet: “Não se sabe o que tem esse menino. Minha Senhora, eu
sei: ele nunca foi beijado”.
Basta observar a maneira de se tratarem. Em
geral, há jeitos cerimoniosos, escolhas de frases, ocultações de pensamentos; o
filho não se anima nunca a dizer francamente o que sofre ou o que deseja e a
mãe o provoca a dizer.
Sem sair daqui, na rua, no bonde, na barca, poderemos
ver a maneira verdadeiramente familiar, íntima, sem morgue nem medo, com que as mães inglesas,
francesas e portuguesas tratam os filhos e estes a elas. Não há sombra de
timidez e de terror; não há o “senhora” respeitável: é “tu”, é “você”.
As vantagens disso são evidentes. A criança
habitua-se àquela confidente; faz-se homem e, nas crises morais e de
consciência, tem onde vazar com confiança as suas dores, diminuí-las, portanto,
afastá-las muito, porque dor confessada é já meia dor e tortura menos. A
alegria de viver vem e o sorumbatismo, o mazombo, a melancolia, o pessimismo e
a fuga do real vão-se.
Repito: não há tenção de fazer uma mercurial
desta crônica; estou a exprimir observações que julgo exatas e constato com
raro desgosto. Antes, o meu maior desejo seria dizer das minhas patrícias,
aquilo que Bourget (4) disse da missão de Mme. Taine (5), junto a seu grande
marido, isto é, que elas têm cercado e cercam o trabalho intelectual de seus
maridos, filhos ou irmãos de uma atmosfera na qual eles se movem tão livremente
como se estivessem sós, e onde não estão de fato sós.
Foi, portanto combinado a leitura de uma
mulher ilustre com a recordação de um caso corriqueiro da nossa vida familiar
que consegui escrever estas linhas. A associação é inesperada; mas não há do
que nos surpreender com as associações de idéias.
Vida urbana, 27-4-1911
Notas:
(1) Goncourt, irmãs (Edmond:
1822 – 1896; Jules: 1830 – 1870): Escritores franceses da escola naturalista.
Autores de romances, estudos sobre arte e de um Diário;
(2) Ermitage: chalé no vale de
Montmoréncy, propriedade de Mme. d’Epinay, onde Rousseau residiu em 1756 e
1757;
(3) Mme. de Houdetot
(Elisabeth de La Live de Bellegarde, Condessa D’Houdetot – 1730 – 1813): Alvo
da paixão de Rousseau, tendo lhe inspirado passagens da Nouvelle Heloise;
(4) Bourget, Paul (1852 –
1935): Escritor francês, autor de ensaios e romances psicológicos;
(5) Taine, Hippolyte (1828 –
1893): Filósofo, historiador e crítico francês.
Crônica
extraída de:
FOLHA
DE S. PAULO. Crônicas Escolhidas – Lima
Barreto. Editora Ática. São Paulo, 1995.
2 comentários
Olha, adoro as crônicas de autores consagrados que fizeram parte da "história" do Brasil. Ótima escolha.
ResponderExcluirBeijos
Karolini
São sempre crônicas maravilhosas. Fico feliz que tenha gostado.
ExcluirBeijos!
Rafaella