Cinema e TV

Clark Gable matou a indústria das camisas de baixo?

segunda-feira, dezembro 28, 2015

Por Rafaella Britto

Clark Gable e Claudette Colbert em "Aconteceu Naquela Noite" (Frank Capra, 1934) - (Foto: Reprodução)

A premiada comédia romântica “Aconteceu Naquela Noite”, de 1934, alimentou sonhos e propiciou esperanças e alegrias a uma geração imersa nas sombras de uma crise. O longa narra a história de Ellie Andrews (Claudette Colbert), a filha de um milionário que, ao ser contrariada por seu pai no desejo de casar-se com seu noivo playboy, foge de casa. No caminho, conhece o charmoso Peter Worne (Clark Gable), um jornalista falido que precisa de uma boa história para vender e, portanto, promete ajudá-la em sua fuga.
O filme foi o primeiro a vencer as cinco principais categorias do prêmio Oscar: Melhor Diretor para Frank Capra, Melhor Atriz para Claudette Colbert, Melhor Ator para Clark Gable, Melhor Roteiro Original para Robert Riskin, e Melhor Filme. 


Claudette Colbert e Clark Gable em "Aconteceu Naquela Noite" (Frank Capra, 1934) - (Foto: Reprodução)

À época de seu lançamento, “Aconteceu Naquela Noite” recheou as páginas das colunas de entretenimento. A história contada ao longo das décadas sugere a paralisação da indústria das camisas de baixo pelas mãos de Clark Gable. Ou melhor, pelo peito nu de Gable: na famosa cena da cabana, Gable se despe e, ao tirar a camisa, revela estar sem a camiseta de baixo. Segundo a lenda hollywoodiana, a cena causou um grande escândalo fashion: ao redor dos Estados Unidos, as mulheres, entre suspiros, encorajaram seus maridos a deixarem de lado as camisetas. Os homens americanos chegaram à conclusão de que “se Clark Gable não usa, eu também não uso”. As vendas da peça diminuíram drasticamente, desde então.

Assista:



As camisetas de baixo são as precursoras das camisetas modernas. Têm este nome por serem utilizadas pelos homens por baixo das roupas, para proteger do suor e odores. Ainda na Antiguidade, os homens usavam peças por baixo das roupas como ato de higiene, uma vez que, até o século 18, banhos não eram rituais regulares. Esses artigos de vestuário serviam, também, para proteger de ocasionais arranhões que poderiam ser causados pela textura áspera das roupas convencionais.


Gravura medieval ilustra um homem sendo vestido. Note sua camisa de baixo. (Imagem: Reprodução/Nick Graham)

Em Nova York, em 1868, foi patenteada a ceroula (union suit): tradicionalmente, a ceroula é confeccionada em flanela vermelha, possui mangas e pernas longas, é fechada na frente por botões, e possui, ainda, botões na parte traseira das nádegas, possibilitando defecar sem que seja preciso despir-se completamente. As ceroulas foram criadas, inicialmente, para as mulheres, durante o período de reforma do traje vitoriano, que propunha designs mais práticos e confortáveis. A peça, porém, foi amplamente adotada pelos homens, sobretudo os trabalhadores rurais de regiões frias, que, além de precisarem proteger o corpo dos odores e suor causados pelo esforço do trabalho físico, precisavam proteger-se do frio.


Anúncio de venda de ceroulas (ca. 1880's) - (Imagem: Reprodução/Nick Graham)

No início do século 20, as camisetas eram as peças utilizadas por marinheiros e membros da Guarda Costeira norte-americana, para proteger os uniformes das sujeiras. Muitas vezes, para adaptarem-se ao clima tropical, os marinheiros utilizavam somente as camisetas, em lugar das antiquadas ceroulas. A prática conquistou adeptos especialmente no esporte, e na Primeira Guerra Mundial, os soldados das trincheiras consideravam a peça mais leve e confortável. Mas a camiseta não foi moda até a década de 1950, quando Marlon Brando e James Dean a transformaram em símbolo de rebeldia da juventude. As camisetas de baixo tornaram-se artigo de luxo, e são as t-shirts dos dias de hoje.


James Dean e Marlon Brando transformaram em moda as camisas de baixo (undershirts) - (Foto: Reprodução)

Entretanto, até o tempo de Clark Gable, aparecer em público vestindo somente a camiseta era considerado deselegante. E não usá-la por baixo das roupas era contrariar sagrados códigos de vestimenta.
A possível nota a originar o mito hollywoodiano foi publicada no New York Post, em 24 de julho de 1934, cinco meses após o lançamento de “Aconteceu Naquela Noite” nos Estados Unidos:


“Clark Gable versus Rei Algodão
(New York Post)

 A vida de um plantador de algodão não é feliz. Se não é o bicudo-do-algodoeiro, é Clark Gable.
 Parece que Clark é a última ameaça para o restabelecimento do Rei Algodão, que tem sido aterrado desde um pouco depois da Guerra Civil.
 O Daily News-Record*, órgão do comércio dry-good*, está alarmado porque Clark não usa nenhuma camiseta. Toda vez que ele tira a camisa de cima nos filmes, é chocante que ele não tenha outra.
 Isso aflige o comércio, que está temeroso do início da mania de uma só camisa entre os homens americanos.
 Seria melhor que o Secretário de Agricultura, Wallace, levasse esse assunto adiante com os magnatas do cinema. A indústria do cinema no Sul cairá rapidamente aos pedaços se todos nós pararmos de usar camisas de baixo e os fazendeiros venderem muito menos algodão.
 Clark Gable está deliberadamente destruindo sua audiência por causa de um peito nu. Isto é economia planejada? Ou isto é um caos econômico?”

*Daily-News Record: jornal especializado em moda masculina, cuja primeira publicação ocorreu em 1890.
*Dry-good: nos EUA, o termo dry-good designa o comércio de produtos têxteis, roupas prêt-à-porter e artigos diversos.

New York Post, 24 de julho de 1934 - (Imagem: Cliff Aliperti/Immortal Ephemera)

O Ruston Daily Leader publicou em 8 de agosto de 1934:


“Ouvimos dizer que Clark Gable não usa camiseta de baixo, mas considere as picantes cenas de amor que ele é forçado a fazer.”
Ruston Daily Leader, 8 de agosto de 1934 - (Imagem: Cliff Aliperti/Immortal Ephemera)

Em 11 de julho de 1938, Hal Hode, assistente de Harry Cohn, presidente da Columbia Pictures (produtora de “Aconteceu Naquela Noite”) disse ao Meriden Daily Journal:


“Ele cita inúmeras consequências do efeito que os filmes têm tido sobre a produção e merchandising. Os negócios da química, cosméticos e beleza, foram estimulados pelos cachos dourados de Mary Pickford, e, mais tarde, pelos cabelos platinados de Jean Harlow e os luxuosos banheiros e itens de toalete de Cecil B. DeMille. Pena que não usar camisa de baixo em uma cena de ‘Aconteceu Naquela Noite’ tenha custado à indústria de roupas íntimas milhares de dólares em vendas perdidas, mas o mesmo filme estimulou viagens de ônibus a 40%. Os arquitetos, agora, estão querendo os planos dos edifícios de ‘Lost Horizon’*, disse o Sr. Hode.”

*Lost Horizon: filme de 1937, dirigido por Frank Capra e estrelado por Ronald Colman

Meriden Daily Journal, 11 de julho de 1938 - (Imagem: Cliff Aliperti/Immortal Ephemera).

Graças a Gable, as vendas das camisetas diminuíram 50%, segundo artigo publicado no Pittsburh Post Magazine, em 14 de agosto de 1949:


“Após o Sr. Gable ter tirado sua camisa em ‘Aconteceu Naquela Noite’, e Claudette, como Euclides, ter visto sua beleza nua, a demanda pelas camisetas diminuiu a porcentagens estimadas em 50.”
Pittsburh Post Magazine, 14 de agosto de 1949 - (Imagem: Cliff Aliperti/Immortal Ephemera)

Em artigo publicado no Daytona Beach Morning Journal, em 3 de abril de 1953, informa-se que as vendas diminuíram 40%:


“Há um interessante marco miliário em 1934, também. Foi o ano em que Clark Gable tirou sua camisa no filme ‘Aconteceu Naquela Noite’. Ele não estava usando camiseta! As vendas decaíram 40%, dizem executivos da B.V.D.*”

*B.V.D: marca de roupas íntimas masculinas fundada em Nova York, em 1876.


Daytona Beach Morning Journal, 3 de abril de 1953 - (Imagem: Cliff Aliperti/Immortal Ephemera)

Segundo o Cumberland Evening Times, em artigo publicado em 18 de março de 1955, a demanda pelas camisetas diminuiu 73% em oito meses, após o lançamento de “Aconteceu Naquela Noite”:


“(...) destrói uma indústria. Clark apareceu uma vez em um filme sem camiseta. O comércio das camisetas decaiu 73% após o lançamento do filme, e os manufatureiros das roupas íntimas berraram como hienas.”
Cumberland Evening Times, 18 de março de 1955 - (Imagem: Cliff Aliperti/Immortal Ephemera)

Neste trecho de artigo publicado em 19 de abril de 1956 no Alton Democrat, informa-se que as vendas diminuíram 80%:


“Mas foi Clark Gable quem deu o golpe final que fez desaparecer a B.V.D. do mapa das lojas de miudezas do país. Foi em 1934, quando ele tirou a camisa no filme ‘Aconteceu Naquela Noite’. Ele estava sem roupa de baixo da cintura para cima. As mulheres imediatamente exigiram que seus homens expusessem seus peitos cabeludos, e o que restou do negócio da B.V.D. decaiu 80%.”
Alton Democrat, 19 de abril de 1956 - (Imagem: Cliff Aliperti/Immortal Ephemera)

Já esta reportagem mais recente do Time, publicada em 6 de março de 2008, aponta que:


“(...) Em Aconteceu Naquela Noite, Gable desabotoa a camisa para revelar – para o choque da audiência de 1934 – um peito nu. Sem camiseta. Reza a lenda que as vendas das camisetas diminuíram 75%. Enquanto não for verificado, a história permanece porque Hollywood a adora (...).”
Time, 6 de março de 2008 - (Imagem: Cliff Aliperti/Immortal Ephemera)


Clark Gable e Claudette Colbert em "Aconteceu Naquela Noite" (Frank Capra, 1934) - (Foto: Reprodução)

Os jornalistas mostram-se divergentes quanto a estipular os custos do peito nu de Clark Gable à indústria das roupas íntimas masculinas. Não há documentos que comprovem estatísticas, entretanto, observe o gráfico abaixo intitulado “Despesas de consumo pessoal por tipo de produto: 1929 a 1970”, retirado do Historical Statistcs of the United States, Colonial Times to 1970: a coluna de número 426 mostra que o consumo de roupas pelos americanos aumentou a cada ano, de 1934 a 1937, porém decaiu de 1931 a 1934 (clique para ampliar).



(Gráfico: Historical Statistics of the United States, Colonial Times to 1970/Cliff Aliperti - Immortal Ephemera)
Mas a diminuição da demanda por camisetas possui uma razão maior do que a simples atitude de Gable nas telonas: a Grande Depressão.
A crise de 1929 provocou drásticas quedas na produção industrial e, consequentemente, altas taxas de desemprego e aumento da pobreza. Os efeitos da recessão econômica foram sentidos ao longo da década de 1930, porém considera-se o ano de 1933 como o ápice da Grande Depressão nos Estados Unidos: neste ano, o então presidente norte-americano, Franklin Delano Roosevelt, adotou o New Deal (‘novo acordo’ ou ‘novo trato’), série de programas implementados em território nacional para recuperar a economia. No intuito de evitar a superprodução na indústria e agricultura, foram adotadas medidas de destruição de estoques agrícolas, como milho, trigo e algodão, e controle sobre a produção e o preço. 
Em 21 de abril de 1934, foi aprovado o Bankhead Cotton Act, ato concebido para complementar as disposições da Lei de Ajuste Agrícola de 1933. O Bankhead Cotton Act estabeleceu uma cota que limitava o cultivo de algodão.
Ainda em 1934, de 3 a 23 de setembro, na Carolina do Norte, cerca de 450.000 trabalhadores da indústria têxtil, em situação de pobreza e sem apoio social, organizaram-se em uma das maiores greves operárias da história dos Estados Unidos, conhecida como Greve Geral de 1934. Segundo matéria publicada em 11 de dezembro de 2013 no Diário Liberdade:

“Em 1921, a indústria algodoeira dos Estados do sul era responsável por 54% da produção total nacional. Este valor aumentou para 67% em 1927, em parte devido à deslocalização das manufacturas a norte para os Estados do sul (Tennessee, Alabama, Geórgia, Virgínia, Carolina do Norte e do Sul), atraídas pelos baixos salários e pela fraca sindicalização dos trabalhadores desta região. A ameaça iminente de deslocalização, consequência do diferencial de valor da força de trabalho entre estas regiões, pesou negativamente no lado dos trabalhadores, sendo utilizada como arma disciplinadora pelo capital.


Greve dos trabalhadores da indústria têxtil, também conhecida como Greve Geral de 1934 (Foto: Reprodução)

Em 1939, foi publicada a primeira edição de “America at the Movies” (sem tradução no Brasil), livro da jornalista, professora e biógrafa norte-americana Margaret Farrand Thorp. Em “America at the Movies”, Thorp escreve: “A história foi contada tantas vezes que deve ser mesmo verdade que a moda de sair sem camiseta por baixo da roupa iniciou quando Clark Gable se despiu na cabana em ‘Aconteceu Naquela Noite’.”
Acerca da primeira edição de “America at the Movies”, a crítica de cinema Iris Barry, em sua resenha no The Saturday Review de 1939, assinalou que “é engraçado ouvir que se Clark Gable aparece sem uma camiseta, os manufatureiros e trabalhadores têxteis são impelidos a protestar por temerem que milhões de pessoas possam fazer da mesma forma.”

Afinal, teria sido Clark Gable o responsável pela extinção das camisetas no traje íntimo masculino? A despeito de quaisquer estatísticas, há somente uma verdade: Hollywood ama o estilo Clark Gable - e nós também.


Clark Gable em "Aconteceu Naquela Noite" (Frank Capra, 1934) - (Imagem: Matinée Moustache)




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5 comentários

  1. Menina, parabéns! Fiquei sabendo desta situação com as camisetas de baixo pelos comentários no DVD de Aconteceu Naquela Noite, e foi justamente por causa destas curiosidades de produção e repercussão do filme que decidi transformar meu blog genérico e fraco em um blog exclusivo de cinema clássico. Mas nunca havia lido um artigo com tantas evidências sobre o assunto. É uma prova inquestionável de que o cinema influencia a moda. E, se Gable matou uma indústria nos anos 30, Brando a reergueu nos anos 50!
    Beijos e parabéns mais uma vez!

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    1. É inegável o impacto do cinema sobre o design. Fico imensamente feliz que tenha gostado, Lê!

      Beijos e obrigada!

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  2. Essa postagem está muito bem feita! Impressionante o impacto que um filme pode ter, não é mesmo?

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    1. É muito impressionante mesmo, Rita! Fico muito feliz que tenha gostado. Obrigada!

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  3. Muito interessante, vou salvar pra terminar de ler depois :)

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