Cinema e TV

Dulce Damasceno de Brito, a correspondente brasileira na Era de Ouro de Hollywood

domingo, abril 03, 2016

Por Rafaella Britto


Em tempos em que o cinema era o principal entretenimento popular, Hollywood despertava fascínio em qualquer sonhador. Poucos foram os que testemunharam de perto o brilho irradiado pelos astros da Era de Ouro, que ainda hoje arrancam suspiros dos amantes da Sétima Arte. Dentre esses poucos privilegiados, estava Dulce Damasceno de Brito, a primeira correspondente brasileira em Hollywood. Entre as décadas de 1950 e 1960, Dulce conviveu e manteve-se grande amiga de personalidades como Carmen Miranda, Kim Novak, Ann Blyth, Cesar Romero, dentre outros. As memórias deste passado rico foram reunidas no livro “Lembranças de Hollywood”, pertencente à Coleção Aplauso e editado em 2006 pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.  

Dulce na década de 1950 (Foto: Acervo pessoal de Dulce Damasceno de Brito/"Lembranças de Hollywood" - Coleção Aplauso)

A própria vida de Dulce se confunde com um enredo de cinema: há controvérsias quanto a sua data de nascimento, porém a maior parte das fontes cita o ano de 1926; nasceu no interior do Estado de São Paulo, na pequena cidade de Casa Branca – já uma premonição de seu destino promissor nos Estados Unidos -, próxima a São João da Boa Vista. Era a caçula de nove irmãos. Devido à profissão do pai, Alfredo Damasceno, farmacêutico e oficial da Guarda Nacional, Dulce e sua família mudavam-se constantemente de cidade, até fixarem residência definitiva no número 977 da Alameda Barão de Limeira, em São Paulo.

Dulce com uma amiga, na casa da rua Barão de Limeira (Foto: Acervo Pessoal de Dulce Damasceno de Brito/"Lembranças de Hollywood" - Coleção Aplauso)

Dulce apaixonou-se pelo cinema aos 4 anos, ao assistir “Anna Karenina”, com Greta Garbo e Fredric March. Menina prodígio, ainda adolescente passou a colaborar nas sessões de crítica cinematográfica das revistas A Scena Muda, Cine Revista e Jornal das Moças. Aos 17 anos obteve o registro de jornalista profissional e adquiriu a revista Fan Magazine. “E não nego que exagerei no batom, no penteado, coloquei saltos altos para aparentar os 18 anos que não tinha e poder assistir os dramas importados da Itália e França”, revelou.
Decidida a alcançar o sonho de ir para Hollywood, Dulce candidatou-se a vaga de correspondente internacional para a revista O Cruzeiro e Diários Associados. A pouca idade não inspirou confiança, porém a menina insistiu com o todo-poderoso diretor dos Diários Associados e magnata da comunicação no Brasil, Assis Chateaubriand, e, dois meses depois, em abril de 1952, embarcou rumo a capital do cinema.

Abril de 1952: Dulce chega a Los Angeles (Foto: Acervo pessoal de Dulce Damasceno de Brito - "Lembranças de Hollywood" - Coleção Aplauso)

Sua primeira entrevista foi com a atriz Dorothy Lamour. "[Dorothy] foi cordial, mas não conseguiu diminuir minha tensão, patente na foto", disse. A partir de então, a jovem jornalista conquistou o prestígio e a amizade dos astros, transitava livremente pelos estúdios, e tornou-se conhecida como “a Louella Parsons da América Latina”. Cobriu dezenas de cerimônias do Oscar, e sua coluna de cinema era reproduzida em mais de 20 jornais brasileiros.

Dulce em sua primeira entrevista em Hollywood, com Dorothy Lamour.:"[Dorothy] foi cordial, mas não conseguiu diminuir minha tensão, patente na foto", disse (Foto: Acervo pessoal de Dulce Damasceno de Brito/"Lembranças de Hollywood" - Coleção Aplauso)

Fredric March foi seu primeiro ídolo, e com quem teve seu único romance em Hollywood: “Ele estava com 57 anos, eu bem mais jovem”, contou. “Uma diferença e tanto. Ele me chamava de Dolce e eu de Marcho. Foi o primeiro homem de minha vida. Esperei cerca de 50 anos para tornar pública essa rápida relação.” Outros ídolos de infância, como Carmen Miranda, tornaram-se amigos preciosos: “Ainda criança comecei a admirá-la. Mas quando colava seus primeiros retratos cortados de revistas ou ouvia seus discos, não imaginava que a Pequena Notável seria uma das melhores amigas de toda minha vida. Uma relação curta, mas marcante até os últimos momentos em que a vi, poucas horas antes de sua morte.”  

Dulce e Carmen Miranda, ídolo de infância que se tornou sua grande amiga (Foto: Acervo pessoal de Dulce Damasceno de Brito/"Lembranças de Hollywood" - Coleção Aplauso)

Dulce foi correspondente em Hollywood por quase duas décadas. Em fins de 1960, retornou ao Brasil e lançou os livros “Hollywood, Nua e Crua” e “O ABC de Carmen Miranda”. Em seus últimos anos, manteve uma coluna de cinema na revista SET. Faleceu em 9 de novembro de 2008, aos 82 anos, debilitada devido ao mal de Parkinson. “Ela foi a primeira mulher brasileira a ser correspondente em Hollywood em um tempo em que Hollywood era fechada a correspondentes estrangeiros e a mulheres. E ela conseguiu um trânsito fantástico entre todos. Além de Carmem Miranda, ela conseguiu amizades e cativar a confiança de celebridades. Ninguém conseguia entrevistar o Marlon Brando e ela conseguiu três vezes”, disse ao G1 o diretor teatral Alfredo Sternheim, amigo pessoal de Dulce e organizador do livro “Lembranças de Hollywood”.

Yves Montand, Marilyn Monroe e Dulce (Foto: Acervo pessoal de Dulce Damasceno de Brito/"Lembranças de Hollywood" - Coleção Aplauso)

Confira alguns dos principais relatos presentes em suas memórias como correspondente em Hollywood entre os anos de 1950 e 1960:

Audrey Hepburn

“Fui testemunha do grande impacto causado em Hollywood pela personalidade diferente de Audrey Hepburn. E passei a ser também uma de suas inúmeras admiradoras. Principalmente depois que a conheci. Tanto foi a minha admiração que batizei minha filha de Audrey. Em maio de 1954, pouco antes de a atriz belga estrear nos palcos da Broadway, entrevistei-a em seu camarim na Paramount. Tomamos chá em um intervalo de Sabrina, seu segundo longa em papel principal. Eu fiquei encantada. Fiz uma matéria deslumbrada para O Cruzeiro. Nesse clima, perguntei se não tinha receio de ostentar um título de deusa: ‘Mas eu estou longe de ser perfeita’, protestou com aquele seu jeito calmo e naturalmente aristocrático. ‘O que muitos têm escrito a meu respeito é produto apenas de um entusiasmo pelo qual serei eternamente grata. Sou tão humana quanto qualquer pessoa e detestaria ser classificada como alguém à parte.’ O tempo provou que Audrey era uma atriz à parte, uma atriz muito especial, conforme se viu em filmes como Amor À Tarde (Love in The Afternoon, 1957), Charada (Charade, 1963), e no belo My Fair Lady (1964). E, com o passar dos anos, demonstrou ter uma vocação humanista que, a partir de 1989, pôs em funcionamento como embaixadora da UNICEF, a agência da ONU especializada em questões de infância. Audrey morreu na Suíça em 20 de janeiro de 1993, pouco antes de completar 64 anos.”

Dulce e Audrey Hepburn (Foto: Acervo pessoal de Dulce Damasceno de Brito/"Lembranças de Hollywood" - Coleção Aplauso)

Humphrey Bogart

“Fui conhecer o maior símbolo do sujeito durão no cinema vivendo um personagem romântico. Foi nas filmagens de Sabrina, em 1954, que o entrevistei. ‘Por favor, não me faça descrever o papel que faço com Audrey Hepburn neste filme’, me pediu, algo tímido. Depois, o grande ator de Casablanca (1942) e Uma Aventura na África (The African Queen, 1950), que lhe valeu o Oscar, deu a entender que tinha certa vergonha em fazer personagens românticos, pois se considerava a antítese do galã. Mas estava orgulhoso de trabalhar com o diretor Billy Wilder. ‘Só ele conseguiu fazer de mim um comediante. E só poderia ser comédia uma história tendo uma garota como Audrey se apaixonando por um cara feio e cinquentão como eu’, disse. Bogart, que parecia ter encontrado o amor definitivo em sua quarta esposa, a bela Lauren Bacall (25 anos mais jovem do que ele), foi durão também ao enfrentar o câncer que acabou por matá-lo em janeiro de 1957, aos 57 anos.”

Dulce com Humphrey Bogart (Foto: Acervo pessoal de Dulce Damasceno de Brito/"Lembranças de Hollywood" - Coleção Aplauso)

Glenn Ford

“Foi mútua a simpatia com o galã de Gilda. Por uma razão: pouco antes de conhecê-lo, Glenn Ford tinha passado algum tempo no Brasil fazendo o principal papel de O Americano (The Americano, 1955), um filme que começou a ser rodado no Brasil com Sara Montiel e acabou em Hollywood com outro elenco (e nunca foi exibido no Brasil). Nosso primeiro encontro deu-se em 1954 nos estúdios da Columbia quando filmava Um Pecado em Cada Alma (The Violent Men, 1955), faroeste dramático com Barbara Stanwyck. A sua vivência paulista rendeu-nos um bom papo. Ele me perguntou por Tônia Carrero, a quem tinha conhecido. Depois, ouvi dizer que tinha acontecido um romance entre os dois. Pudera. Tônia lindíssima e Ford mulherengo... Mas o ator andava resguardado por sua esposa, a atriz e bailarina Eleanor Powell, protagonista de musicais famosos como Rosalie (1937) e Melodias da Broadway (1940), já então aposentada. Vi-os juntos em diversas ocasiões, formavam um belo casal. A união durou de 1943 a 1959. Ao entrevistá-lo em 1958 nas filmagens de Torpedo, circulavam rumores sobre seu divórcio. Mesmo assim, foi simpático, admirou a figa em meu pescoço e, naturalmente, lembrou-se do Brasil (...).”

Dulce com Glenn Ford (Foto: Acervo pessoal de Dulce Damasceno de Brito/"Lembranças de Hollywood" - Coleção Aplauso)

Grace Kelly

“Foram duas entrevistas que fiz com Grace Kelly. Na primeira, quando filmava Amar é Sofrer (The Country Girl), que acabou lhe valendo o Oscar de melhor atriz em 1954. Tomamos chá em seu camarim na Paramount. Em nossa conversa, pouco se falou de sua vida particular. Na segunda, já se sabia que, naquele ano, ela seria coroada princesa de Mônaco por conta de seu próximo matrimônio com o príncipe Rainier III. E o tema predominou. Grace me recebeu no estúdio onde filmava Alta Sociedade (High Society), sua despedida do cinema. Pouco antes, tinha feito O Cisne (The Swan, 1956), em que interpretava uma princesa, ao lado de Alec Guinness e Louis Jourdan, dirigida por Charles Vidor. ‘Alguma influência do papel no seu noivado com o príncipe?’, perguntei. Ela foi clara: ‘Não. Qualquer que seja a personagem que interpreto no estúdio, nunca a levo para casa.’ Depois, falou com riqueza de detalhes como conheceu Rainier, apresentada pelo jornalista  Pierre Galante, então marido de Olivia de Havilland e redator-chefe da revista Paris Match. Descreveu como seria a cerimônia de seu casamento e a sua vida de princesa. Com ternura, confessou que apreciava no futuro marido ‘o seu senso de humor e romantismo’.
Deixou claro, contudo, que, de fato, iria abandonar o cinema. ‘O Príncipe e eu achamos incompatíveis a minha nova posição social com a carreira artística. A Metro compreendeu a minha situação e gentilmente me liberou do restante do meu contrato.’ O mundo deixou de contar com uma atriz sensual e refinada, conforme mostram ainda hoje filmes como Mogambo (1953), onde despertou a paixão de Clark Gable, Ladrão de Casaca (To Carch a Thief, 1955) e Janela Indiscreta (Rear Window, 1955). Mas passou a ter uma princesa que, até a morte, cumpriu com as obrigações do cargo e mostrou-se uma dedicada mãe de família.”

Dulce com Grace Kelly (Foto: Acervo pessoal de Dulce Damasceno de Brito/"Lembranças de Hollywood" - Coleção Aplauso)

Bette Davis

“A primeira vez que entrevistei Bette Davis foi em 1956 nas filmagens de A Festa de Casamento (The Catered Affair), na Metro. Dirigida por Richard Brooks, ela estava no estúdio ensaiando uma cena que filmaria em seguida, com Ernest Borgnine e Debbie Reynolds, que faziam seu marido e sua filha. O publicista havia me advertido para não ficar na mira do olhar de Bette, pois ela não tolerava sentir-se observada por estranhos nos ensaios. Depois da filmagem, ela veio em minha direção, mancando. Tremi de emoção quando a grande atriz de Servidão Humana (Of Human Bondage, 1934), Perfídia (The Little Fozes, 1941), e tantos outros filmes, me estendeu a mão. Mas a deusa logo esbanjou simpatia. Encostada em uma cadeira especial que impedia de amassar a roupa de cena, ela me explicou que luxou o pé jogando rugby com o filho Michael: ‘Nunca fui de praticar esportes, mas meus filhos têm prioridade’, explicou. Depois de falar sobre o filme que fazia e outros trabalhos, me perguntou do Brasil e lamentou a morte de Carmen Miranda, a quem admirava. Bette justificou o sucesso: ‘Não é uma questão de ter ou não ter talento. Existe tanta gente de valor por aí, que não sabe abrir o seu caminho... Espera que as coisas caiam do céu.’ Determinada, Bette sempre soube enfrentar fases adversas. Uma levou-a para a Itália, onde, com seu porte, majestoso, fez papéis de matriarcas de grandes famílias. Em 1962, sem trabalho, colocou anúncio no Variety oferecendo-se para atuar. Robert Aldrich viu e chamou-a para fazer o ousado O Que Terá Acontecido a Baby Jane? (Whatever Happened to Baby Jane). Hoje o filme é um clássico e atriz, um nome de primeira grandeza na história do cinema.”

Dulce com Bette Davis (Foto: Acervo pessoal de Dulce Damasceno de Brito/"Lembranças de Hollywood" - Coleção Aplauso)

Referências:

DAMASCENO DE BRITO, Dulce. Lembranças de Hollywood. Alfredo Sternheim (organização). Coleção Aplauso. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – São Paulo, 2006

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4 comentários

  1. Eita,Glenn Ford e seu sorriso safado ♥ HAHAH, queria ter entrevistado eles! Um mais talentoso que o outro, mas você já sabe que o Bogart é um amor platônico que eu levo comigo (sim caras mais velhos sempre).

    Beijos!

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  2. Ouvia sempre dulce damasceno no rádio e , em 1963, quando tyrabalhava no rio, conheci o consul 'rauil smandeck, que foi casado com a mesma. bverdade |/

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  3. Eu era assinante da Revista SET. Lembro de Dulce. Tinha orgulho de saber, que havia uma brasileira, no 'mundo glamouroso de Hollywood'. Era para poucos. Que vida foi a dela. Excelente matéria.

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