Por Rafaella Britto —
“Um talento em revolta permanente contra todas convenções, preconceitos e mentiras sociais.” Assim escreveu o jornalista Afonso de Carvalho, em artigo publicado no jornal A Manhã, em 1935, referindo-se à primeira musa do cinema brasileiro, Carmen Santos.
Confrontando o machismo e o conservadorismo característicos de sua época, Carmen Santos foi uma das primeiras mulheres a produzir e dirigir um filme em toda a história do cinema. Atriz, roteirista, cineasta e empresária, Carmen rompeu a dicotomia entre a vamp e a virgem imaculada, sendo reconhecida — dentro e fora das telas — como uma mulher livre e de espírito trangressor. Conheça sua vida e obra.
PRIMEIROS ANOS
Maria do Carmo Santos Gonçalves nasceu em Vila Flor, vila portuguesa localizada na região Norte, em 8 de junho de 1904. Imigrou para o Rio de Janeiro com a família em 1912, aos oito anos de idade. O pai, João dos Santos Gonçalves, era marceneiro, e não podia dar conta do sustento de sua família. Como filha mais velha, Carmen abandonou a escola pública para trabalhar em uma importante casa de modas, onde tinha como função pregar botões.
A pesquisadora Ana Pessoa, em seu livro Carmen Santos e o cinema dos anos 20, descreve os primeiros anos da atriz e a condição feminina na sociedade de sua época: “As indústrias de confecções, “vestuário e toucador”, assim como a indústria têxtil, são as mais receptivas frentes de trabalho para as mulheres e meninas dos baixos extratos sociais. As atividades de tecer, costurar e pregar botões nas oficinas de costura transformam em unidade de produção o universo doméstico feminino de fios, agulhas e carretéis.” (1)
De operária, Carmen é promovida ao cargo de vendedora de varejo, sendo aclamada por sua beleza.
NASCE UMA ESTRELA…
A chegada do técnico americano de cinema William Jansen ao Brasil e a instalação da produtora Omega Film sacodem o panorama artístico nacional. Apaixonada pelo cinema, Carmen decide fazer o teste para a Omega e é selecionada para interpretar Marta, uma jovem sofredora e desamparada, no filme Urutau (1919), dirigido por Jansen.
A seguir, interpretou as jovens no desabrochar do sexo, Lenita e Rosalina, nos respectivos A Carne, de 1924, adaptação do romance de Júlio Ribeiro, e Mademoiselle Cinema, de 1925, ambos inacabados. Embora esses filmes jamais tenham sido lançados comercialmente, Carmen era já uma estrela em ascensão.
Nesse ínterim, Carmen conheceu Antônio Seabra, jovem e rico empresário do ramo têxtil, e iniciaram uma relação aberta. Carmen continuou a viver com seus pais em uma casa na Tijuca, Rio de Janeiro, sendo sustentada por Seabra, que oferecia suportes financeiros a suas empreitadas no cinema.
A relação, alvo das fofocas e da moral da sociedade conservadora, era mantida distante da publicidade. Carmen tinha entre 15 e 16 anos quando conheceu Seabra, e, assim, rompeu mais uma barreira no destino reservado às mulheres de sua condição social: “A paixão aumenta o inconformismo da jovem atriz, levando-a não somente a afirmar suas perspectivas profissionais como a romper com um dos mais sagrados valores da sociedade de sua época: a virgindade”, escreve Pessoa. “Segundo os preceitos jurídicos em vigor, o relacionamento sexual precoce era severamente punido — o desvirginamento de menores de 16 anos, independente do uso ou não de violência, era considerado um estupro.” (2)
O CICLO DE CATAGUASES
Em 1929 Carmen tornou-se parceira do cineasta Humberto Mauro, ‘o pai do cinema brasileiro’. Em seu primeiro filme juntos, Sangue Mineiro, Carmen interpreta uma mocinha romântica, também chamada Carmen.
Entretanto, o desejo da jovem atriz era interpretar flappers sensuais, mulheres de força e autonomia e, mais tarde, ela revelou que só aceitou o papel em Sangue Mineiro para integrar o ciclo artístico de Cataguases (cidade de Minas Gerais que estava à frente do Modernismo, nos primórdios do cinema brasileiro). “Acho que devo fazer bem exatamente a mulher moderna, a ‘sapeca’, na expressão vulgar, com um fundo de sinceridade e sentimentalismo”, contou à revista Cinearte.
Em 1930 fez uma curta participação no mítico Limite, obra-prima do cineasta Mário Peixoto, recentemente restaurada por Martin Scorcese. Em seguida, Mário convidou-a para protagonizar sua nova produção, Onde a Terra Acaba. A Dama — como era conhecida entre seus colegas de profissão — encontrou no filme a possibilidade de concretização de seu desejo de papéis fortes: nele, Carmen interpreta uma escritora que foge para uma ilha em busca de isolamento e inspiração para a escrita de seu romance. A sua presença põe em xeque a amizade de dois homens, habitantes da ilha. O caso de amor com um deles o desperta para uma realidade até então desconhecida e o enredo desenvolve-se a partir do drama existencial. No entanto, a produção de Onde a Terra Acaba fracassou e as filmagens foram permanentemente interrompidas.
Ainda em parceria com Humberto Mauro, Carmen fundou sua produtora, Brasil Vox Films — que, em 1935, passou a chamar-se Brasil Vita Filmes. A atriz produziu e estrelou filmes como Favela dos Meus Amores (1935) e Cidade-Mulher, ambos dirigidos por Mauro.
INCONFIDÊNCIA MINEIRA
Em 1936, Carmen declarou não estar se sentindo realizada nos seus últimos projetos: “Pelo meu temperamento cigano e romântico, pelo que tenho sofrido, pela minha maneira de compreender a vida, só os papéis fortes para as grandes emoções é que me satisfazem”.
No auge do Estado Novo, Carmen integrou o movimento pela reivindicação de apoio governamental às produções nacionais e fundou seu próprio estúdio. Em nota, a atriz escreveu ao presidente Getúlio Vargas: “No Cinema Brasileiro, eu ficaria profundamente magoada se me dessem o título de ‘estrela’ — eu sou um cérebro que trabalha desabaladamente das oito às 24 horas, que luta pela organização da indústria cinematográfica em nosso país com a máxima sinceridade e, por isso, quase sempre, sozinha […] quero é trabalho, produção conscienciosa; é cinema na nossa língua; costumes, ambientes, técnica, tudo brasileiro; absolutamente, essencialmente brasileiro.” (3)
A partir de então, debruçou-se sobre seu maior e mais ambicioso projeto: a adaptação da Inconfidência Mineira para o cinema, filme que roteirizou, dirigiu e em que atuou no papel de Bárbara Heliodora, a poetisa da Inconfidência.
Brasil Gerson, argumentista de Inconfidência, descreveu o perfil da heroína idealizada por Carmen: “Bárbara Heliodora foi a mulher mais bonita, mais amorosa, mais culta do Brasil do século XVIII e, no entanto, nada disso a impediu também de ser uma heroína, dedicada de corpo e alma a uma grande causa coletiva, uma revolucionária que amou, fez versos, teve quatro filhos e se sacrificou pela libertação de seu povo. Nada mais falso, portanto, do que se dizer que as mulheres que se esquecem de si mesmas para se dedicar a empreendimentos tidos como privativos dos homens são feias, frias, insensíveis e inadaptáveis a tudo quanto se relacione com as coisas subtis e agradáveis que Deus inventou…” (4)
A grandiosa produção levou 11 anos para ser concluída. Ao longo deste período, Carmen pouco veio a público. Quando indagada pela Cine-Rádio Jornal acerca de próximos projetos, respondeu: “Pretendo, mas não há nada assentado até agora. Por enquanto, procurarei, apenas, terminar Inconfidência e não formulo mais nenhum projeto.” (5)
Em Inconfidência Mineira, estreava nas telas como figurante o então jovem ator Anselmo Duarte — posteriormente diretor vencedor da Palma de Ouro em Cannes em 1962 por O Pagador de Promessas. “A Carmen, que era portuguesa, foi uma grande pioneira do cinema brasileiro e terminou destruindo sua carreira por causa da obsessão em contar a história da Inconfidência Mineira”, contou Anselmo. “Ela planejou o filme em 1937, começou a filmar em 1939 e só terminou em 1948. Foram muitos problemas, de produção e até de ordem pessoal. Rodolfo Meyer fazia Tiradentes e eu fiz minha estréia no cinema como figurante, sem direito a fala.” (6)
UMA VIDA DEDICADA AO CINEMA
Em 1940, Carmen estrelou seu filme mais famoso, o drama Argila, de Humberto Mauro. Nele, Carmen é Luciana, uma jovem e rica viúva que, em busca do sentido da vida, apaixona-se por um simples artesão da roça, Gilberto (interpretado por Celso Guimarães), com quem partilha do amor pela arte marajoara. O polêmico beijo impulsionado por Luciana ilustra a imagem do cartaz, exposto durante a exibição de Argila nos cinemas.
Desde 1935, Carmen mantinha um relacionamento afetivo com o jornalista e roteirista Brasil Gerson. Perseguido por seu pensamento à esquerda, Brasil Gerson exilou-se na Argentina. Ele e Carmen haviam sido acusados de integrarem uma célula comunista nos anos da repressão.
As filmagens de Inconfidência Mineira iniciaram-se em 1941 e só foram concluídas em 1948, mas a produção já havia se iniciado em 1937. 11 anos de trabalho redundaram em fracasso de bilheteria. Falida, Carmen vendeu o estúdio.
Carmen Santos morreu em 24 de setembro de 1952, vítima de câncer, aos 48 anos. Sua autobiografia, em que descreve os anos de luta na indústria cinematográfica brasileira, intitula-se Dezessete Anos no Inferno. A maior parte de seus filmes foi destruída em um incêndio. De Inconfidência Mineira, restaram somente fragmentos. De seus trabalhos no cinema mudo, Sangue Mineiro e Limite sobreviveram intactos, e, do cinema falado, somente Argila. Seu legado como pioneira do cinema é ainda resgatado e apreciado.
“Personalidade forte, rígida, imperativa”, escreveu Afonso de Carvalho. “Movimentos rápidos, incisivos, retangulares. Sem meneios, sem artifícios, sem curvas, sem futilidades. Espírito de decisão, qualidades de chefe. Energia inquieta. Um espírito de general à procura d’um exército… Vontade indomável, intransigente. Uma mulher que caminha como homem, com saltos a Luis XV. Passos largos, firmes, duros, ritmados. Uma linha reta atravessando a multidão, indiferente às calçadas, à chuva e aos homens…” (7)
Referências:
(1) PESSOA, Ana. Carmen Santos e o Cinema dos Anos 20. Editora Aeroplano — 2002. Pág. 22
(2) PESSOA, Ana. Carmen Santos e o Cinema dos Anos 20. Editora Aeroplano — 2002. Págs. 35–36
(3)(4) (5) (7) (PDF) PESSOA, Ana. Sob a Luz das Estrelas: Relembrar Carmen Santos. Fundação Casa Rui Barbosa.
(6) CARLOS MERTEN, Luiz. Anselmo Duarte — O Homem da Palma de Ouro. Coleção Aplauso. Imprensa Oficial — São Paulo, 2004
Originalmente publicado no site Cine Suffragette.
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