Comportamento

A moda como retrato político-social no Afeganistão

sexta-feira, setembro 04, 2015

Por Rafaella Britto

Jovens afegãs caminham pelas ruas de Cabul em 1972
(Foto: Reprodução)

Localizado no Oriente Médio, o Afeganistão, país de belezas pouco aclamadas na cultura Ocidental, é rememorado pelas novas gerações como palco de guerras e tragédias. Cinco anos de domínio Talibã fizeram calar as vozes de mulheres, que, agora, conquistam seu espaço no mundo moderno.

Influência do Art-Déco nos trajes afegãos (anos 1920)
Foto: Reprodução

Em junho de 2010, o engenheiro afegão e professor da San Jose State University, Mohammad Quayoumi, reuniu fotografias do Afeganistão nas décadas de 1960-70. As imagens inéditas foram compiladas em ensaio especial para a revista norte-americana Foreign Policy. "A partir das imagens que as pessoas veem na TV, muitos chegam à conclusão de que o Afeganistão nunca saiu da Idade Média. Mas esse não é o Afeganistão de que eu me lembro. Cresci em Cabul, durante os anos 50 e 60. Comovido pelo fato de que os novos retratos da história do país não se encaixam em minhas memórias, quero descobrir a verdade", , diz Quayoumi. "Relembrar o passado esperançoso do Afeganistão só faz com que o presente pareça mais trágico. Mas é importante saber que a desordem, o terrorismo, e a violência contra escolas que educam garotas, não são inevitáveis. Quero mostrar aos jovens do Afeganistão de hoje como seus pais e avôs realmente viveram".

Foto: Reprodução/Mohammad Quayoumi

Foto: Reprodução/Mohammad Quayoumi

Foto: Reprodução/Mohammad Quayoumi

Foto: Reprodução/Mohammad Quayoumi

Foto: Reprodução/Mohammad Quayoumi

A moda pelas ruas do Afeganistão é a mais rica expressão das realidades políticas sofridas pelo país, ao longo das décadas de sua história milenar.
A moda afegã, bem como outros aspectos da cultura local, foi influenciada por povos de diferentes etnias, que incluem os Pashtuns, os Tajik, Hazara, Uzbek, entre outros, cada qual com diferentes tradições. Os conjuntos de calças largas e camisas longas, utilizados pelos homens e mulheres afegãos, são conhecidos como shalwar kameez.

Imagens do calendário Ariana Afghan Airlines - 1973
Foto: Reprodução/Waslat

Imagens do calendário Ariana Afghan Airlines - 1973
Foto: Reprodução/Waslat

Imagens do calendário Ariana Afghan Airlines - 1973
Foto: Reprodução/Waslat

Imagens do calendário Ariana Afghan Airlines - 1973
Foto: Reprodução/Waslat

Para os homens, o conjunto tradicional chama-se khet partug: o khet é uma peça de vestuário larga, semelhante a uma túnica ou roupão, de comprimento abaixo dos joelhos. Originalmente, o khet não possui aberturas laterais, e é preso à cintura por um cinto; o partug, por sua vez, é a larga calça de pregas utilizada por baixo do khet.
Para as mulheres, o traje utilizado chama-se fariq partug, e compõe-se de três peças: o xador (código de vestimenta do Islão – lenço que cobre a cabeça, deixando à mostra o rosto); o fariq (vestido com saia ampla a partir da cintura, algumas com comprimento pouco abaixo dos joelhos, e outras à altura dos tornozelos); e o partug, semelhante ao traje masculino, por baixo do fariq.

Homem e mulher afegãos em trajes típicos (1842 e 1879)
Foto: Reprodução

As vestes tradicionais são confeccionadas, em sua maioria, em linho. Vestidos mais elaborados, em seda e decorados com contas de ouro, são usados por mulheres em cerimônias e ocasiões especiais, como casamentos. A mais popular técnica de bordado para vestidos casuais é conhecida como Kandahari doozi, produzida na cidade de Kandahar.

Kandahari doozi, técnica de bordado tradicional no Afeganistão
Foto: Reprodução

Houve tempo, entretanto, em que os trajes tradicionais eram desconhecidos ou ignorados pela juventude. Nas décadas de 1960-70, a tendência explosiva da minissaia de Mary Quant atravessou fronteiras: em 1972, jovens emancipadas desafiavam a tradição muçulmana, exibindo livremente suas pernas desnudas pelas ruas. Os mulás (sacerdotes muçulmanos), se as vissem, não hesitavam em atirar ácido às suas pernas.

Foto: Reprodução


Foto: Reprodução

Foto: Reprodução/Livro: "Mulheres de Cabul" - Harriet Logan

Dos anos 1960 até meados da década de 80, sob o domínio comunista, a capital afegã, Cabul, era símbolo de glamour: as mulheres eram livres para divertirem-se em concertos, cinemas e restaurantes. Desfiles de moda, apresentando a beleza das tradições, mescladas às últimas tendências europeias, eram frequentes na cidade.


Os casacos de pele de cabra tornaram-se a peça must have da moda afegã, gerando grande demanda de exportação mundial, e ganhando representações em publicações como a Vogue. Os casacos de pele afegãos foram reinterpretados por estilistas europeus e norte-americanos, e conquistaram o público da década de 1970. 

Vogue Paris - 1969, com referências à moda afegã
Foto: Reprodução

Casacos de pele de cabra afegãos, populares nos anos 1970
Foto: Reprodução

À esquerda, design da estilista afegã Safia Tarzi; à direita, Safia Tarzi em seu ateliê em Cabul (1969)
Foto: Reprodução

A tomada de Cabul pelo Talibã (movimento nacionalista islâmico), em setembro de 1996, poria fim aos anos felizes daquela geração: o Talibã impôs severas leis à população. As leis foram violentamente defendidas até outubro de 2001, quando os EUA, com o auxílio das tropas afegãs, derrubaram o governo vigente.
De 1996 a 2001, a infelicidade e o medo traduziram-se na moda: os decretos impunham às mulheres o uso da burca (veste semelhante ao xador, porém que cobre também o rosto), e aos homens, a obrigatoriedade da barba. O Talibã proibiu o uso de cosméticos e os penteados à moda inglesa e norte-americana, sob pena de raspagem completa dos cabelos. As mulheres que fossem descobertas usando batom tinham seus lábios cortados.

Foto: Reprodução

O Talibã proibiu a execução de música e dança, a confecção de roupas femininas e tiradas de medidas corporais por alfaiates; as mulheres foram duramente privadas de seus direitos fundamentais, como sair de suas residências, trabalhar e frequentar escolas.
Entre 1997 e 2001, a premiada fotógrafa britânica Harriet Logan visitou o Afeganistão por duas vezes, colhendo relatos de mulheres de diferentes idades, e reunindo-os no livro-reportagem “Mulheres de Cabul”, lançado em 2002. Dentre as entrevistadas, estão Shafika Habibi, apresentadora do Noticiário da Televisão Nacional, por 34 anos a mulher mais famosa do Afeganistão, vista frequentemente em capas de revistas. Habibi foi forçada a deixar o emprego após a subida do Talibã ao poder.

Shafika Habibi
Foto: Reprodução/Harriet Logan - Livro: "Mulheres de Cabul"

“O progresso tem sido muito difícil para as mulheres no Afeganistão", afirmou Habibi em seu depoimento a Harriet Logan. "Em 1959, quando comecei a trabalhar na estação de rádio de Cabul, foi decretado que as burkhas não eram mais obrigatórias. Foi um período de felicidade; éramos as primeiras mulheres a ter empregos desse tipo. Desde então, as coisas foram progredindo, até a época do Taleban. Talvez minha geração tenha ido longe demais. Na década de 1970, quando os comunistas tomaram o poder e eu entrei para a televisão, nossa cultura tornou-se quase europeizada. Naquele tempo, tudo aqui era ocidentalizado: as roupas, a comida, todo o nosso estilo de vida. Eles até mostravam pessoas dançando na televisão! Mas isso só aconteceu aqui em Cabul. O restante do país, o povo analfabeto, vivia noutro mundo. O que está acontecendo agora é uma reação àquela separação entre os dois mundos.”


Shafika Habibi em dezembro de 1997
Foto: Reprodução/Harriet Logan - Livro: "Mulheres de Cabul"

Em 1997, o governo decretou a proibição do uso de sapatos brancos, pois esta era a cor da bandeira afegã. Foram proibidos, também, os sapatos chamativos, ou que produzissem ruído. Algumas mulheres de espírito transgressor utilizavam lápis de olho e batom como ferramentas de resistência e desobediência civil ao regime.

Foto: Reprodução

A PARSA (Physiotherapy and Rehabilitation Support for Afghanistan – Auxílio de Fisioterapia e Reabilitação para o Afeganistão), pequena ONG dirigida pela norte-americana Mary MacMakin, atua no país desde 1996, promovendo atividades como cursos de costura e tecelagem, e instrução e educação de mulheres, no intuito de trazer melhorias à população afegã e garantir os direitos femininos.
Após o fim do regime Talibã, em 2001, fizeram-se notar os primeiros traços de liberdade: em lojas e estabelecimentos, televisores, câmeras de vídeo, fitas cassete, rádios e paredes forradas de pôsteres de artistas de Bollywood passaram a ser novamente vistos. Devido ao sucesso clandestino de “Titanic”, Kate Winslet tornou-se ícone de moda e beleza entre as garotas afegãs. No entanto, decretado o fim do regime opressor, grande parcela das mulheres não queimou suas burcas: pelo contrário, continuaram a trajá-la, por medo do aspecto predatório e lascivo dos homens nas ruas.


Foto: Reprodução/Reuters

Na atualidade, a juventude desafia os líderes religiosos: a moda masculina vem atingindo seu auge com o advento de roupas modernas e penteados inspirados nos astros pop sul-coreanos. Os preceitos estéticos ocidentais são condenados pela sociedade ultraconservadora como sendo contra a identidade do Islão. É o que mostra esta reportagem da AFP:


Em 2006, após séries de negociações com o governo local, o Afeganistão exibiu seu primeiro desfile de moda em três décadas. O desfile, realizado em cerimônia fechada, atrás dos muros de um hotel de luxo, foi assistido por membros da elite afegã e estrangeiros. Na passarela, no entanto, não desfilaram modelos afegãs. Os organizadores vieram a público alegando que preferiram evitar controvérsias, uma vez que a profissão de modelo é mal vista aos olhos de inúmeros pais de meninas ao redor do país. As criações das estilistas Gabriella Ghidoni e Zolaykha Shersad, exibidas durante o evento, apresentaram cortes tradicionais.
Estilistas e profissionais da moda afegãos lutam para desconstruir a imagem do país como sinônimo de aspecto negativo, e fazer notar em todo o mundo as belezas presentes na vida, sociedade, história e cultura de seu povo.


Fontes:

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2 comentários

  1. Incrível como, mesmo após o fim do regime Taleban, as mulheres introjetaram a sacralização da burkha; ainda mais curioso é a observação da apresentadora Shafika Habibi de que sua geração teria excedido aos limites, não percebendo a ruptura cultural que praticava alucinadamente na capital, distanciando-a dos costumes e tradições do resto do pais. Ela parece reconhecer nisto um erro que justificaria o regime ditatorial religioso.
    Excelente, Rafa!

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  2. No transitório da vida, muitas coisas nos estarrecerão. Não sabemos se a vida na terra é no universo o centro do projeto ontológico do Criador. Sabemos de sua transitoriedade. Esta é a receita da felicidade. Tragédias transmudam no pitoresco. Eu penso que o Afeganistão é hoje um país de topografia nivelada. É que ali aconteceu uma das maiores e recentes terraplenagens a fogo, com um espetáculo a um só passo pobre e espetacular no horizonte raso dos humanos: máquinas voadoras despejando artefatos que explodem, matam e ...terraplenam...

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Criado em 2010 por Rafaella Britto, o blog Império Retrô aborda a influência do passado sobre o presente, explorando os diálogos entre arte, moda e comportamento.


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